Por Maurício Rands*
Navegar pelas 300 páginas do Projeto de Lei nº 04, de 2025, em tramitação no Senado, é algo estimulante. O PL foi elaborado por comissão de juristas instituída pelo Senado para revisar o Código Civil (Lei 10.406/2002). A comissão foi presidida pelo ministro do STJ Luís Felipe Salomão e teve como relatores gerais Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce.
O PL está aguardando despacho do presidente do Senado para definir se vai tramitar como projeto de lei ordinária ou como projeto de código. Está a um longo caminho de virar lei. Até porque, quando chegar na Câmara, vai sofrer alterações que o remeterão de volta para nova tramitação no Senado.
Leia maisO PL atualiza nosso Código Civil numa quadra de grandes alterações tecnológicas, comportamentais e econômicas. Traz grandes avanços. A direção geral do texto é a tentativa de destravar a vida das pessoas e dos negócios. Busca uma harmonização com marcos legais como LGPD, ECA, Estatuto do Idoso e decisões do STF. Fortalece a coerência do ordenamento jurídico e sua aderência ao constitucionalismo contemporâneo. Mas seria ingênuo supor que o Congresso Nacional não vai modificar o texto da comissão de juristas.
Muitas deformações poderão ser introduzidas. O atual CN parece mais interessado em sua autorreprodução e tem andado de costas para os interesses da maioria do povo. Ainda bem que o tema deve ficar para o próximo. Problema é a qualidade do próximo. Ademais, o PL tem sido criticado por especialistas que apontam alguns riscos de insegurança jurídica que decorreriam do excessivo recurso a conceitos vagos que causariam muita judicialização.
Por isso, pode ser mais viável examinar em separado algumas das inovações do PL. Em um país tão dividido, poderíamos identificar alguns temas específicos com mais chances de apoio transversal. Nas eleições de 2026 poderiam surgir candidaturas de diferentes partidos que adotassem algumas propostas. Embriões de bancadas com candidaturas comprometidas com certos temas. Difícil, não é? Mas em alguns temas concretos podemos tentar alguns consensos parciais.
Como na questão das inovações tecnológicas e da internet. O PL acrescenta ao CC um livro específico sobre direito digital. Definem-se os direitos das pessoas físicas e jurídicas no ambiente digital. Os direitos patrimoniais puros se transmitem aos herdeiros. Ao contrário dos direitos personalíssimos. Os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integram a sua herança. Portanto, transmitem-se aos herdeiros senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual.
Já os direitos da personalidade, tais como privacidade, intimidade, imagem, nome, honra e dados pessoais, inclusive mensagens privadas, são protegidos por leis específicas. O PL também define regras sobre a exclusão de conteúdo, a responsabilização das plataformas digitais e o controle de conteúdos ilícitos. Com alguns conceitos que acabam de ser incorporados pelo STF no Tema 987 sobre o Marco Civil da Internet.
No direito de família, o PL confere proteção jurídica à definição ampliada de família, formada por vínculos conjugais e não conjugais nas seguintes modalidades: i) casais que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público; ii) famílias formadas por mães ou pais solos; e iii) grupos que vivam sob o mesmo teto e possuam responsabilidades familiares. O PL reconhece a união homoafetiva, assegurando à população gay o direito à união civil que antes ocorria apenas na jurisprudência.
Tanto a sociedade conjugal (a tradicional, entre cônjuges) quanto a sociedade convivencial (a união afetiva, que passaria a se dar entre conviventes) podem ser homoafetivas.
No tema do direito empresarial, o PL visa destravar negócios. Amplia a liberdade para grandes negócios. O PL também inova ao estabelecer uma nova relação jurídica para os animais. Eles serão reconhecidos juridicamente como seres sencientes e capazes de ter sentimentos e direitos. Protegidos pelo vínculo afetivo. Supera-se o tradicional tratamento dos animais como bens móveis.
É impossível imaginar uma coalizão de candidaturas que se comprometam com inovações na área da regulamentação das plataformas a fim de harmonizar a liberdade de expressão/informação com outros direitos fundamentais? Ou com algumas inovações no direito empresarial para melhorar o ambiente de negócios?
Ou no enfrentamento do preconceito contra a comunidades LGBTQIA+ ou afrodescendentes? Ou para ampliar o conceito de família? Esse o desafio que está posto. Mais do que um novo código, podemos introduzir conceitos que integram o texto do PL 04/202. Pode-se forjar uma coalização em defesa desses avanços. Ainda que os atores pertençam a campos ideológicos distintos.
*Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
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