Disseram-me que os banheiros ficam fechados para que não roubem as privadas. Mas uma privada é mais importante que uma vida humana? Certamente, não. Mas o que justifica, então, a Prefeitura do Recife trancar banheiros com as luzes acesas e ignorar a miséria dos que, a poucos metros dali, mal conseguem se proteger do vento e da chuva nas beiradas dos quiosques da orla de Boa Viagem?
Afinal, moradores de rua também defecam e urinam, inclusive durante a noite. Essa constatação simples já justificaria não lhes impedir o acesso aos banheiros durante a madrugada.
Como no célebre filme do expressionismo alemão, a morte está cansada! Cansada de ir ceifando aos poucos, noite após noite, dia após dia, a vida, os sonhos e as esperanças dos despossuídos que escolheram esse cenário idílico talvez por pressentirem, no seu íntimo, que talvez não lhes reste muito tempo.
Eles têm, assim, ao menos a dádiva de poderem ver e sentir a grandiosidade de Deus traduzida na amplitude dos céus desimpedidos e na força do mar bravio. Também é lá que um observador atento pode testemunhar o contraste dessa grandeza com a diminuta estatura moral de homens e mulheres que ostentam corpos definidos em roupas da moda, mas ignoram a dor dos irmãos que teimam em ornar seu circuito com sua presença incômoda.
O espanto nos olhos de uma criança ao ver um homem dormindo sob um quiosque. Olhei para a criança. Ela vinha caminhando com seu pai, para um passeio matinal. Mas ao ver o homem no chão, encolhido e dormindo, ficou em choque. Parou, olhou. Depois buscou o pai com os olhos e com gestos trêmulos. O que aquele homem fazia tão cedo ali? É como se sua cabecinha estivesse processando pela primeira vez uma gama de informações em busca de algum sentido. Tinha que haver uma explicação. Ele dormiu ali? Exposto ao frio, à chuva? Aos bichos perigosos da noite? Aos ladrões e assassinos? Ou às bruxas, monstros e fantasmas? Ele gosta disso? Ele não tem para onde ir? As outras pessoas não o ajudam? Ele não aceita ajuda? Isso poderia acontecer comigo? Ou com alguém que amo? Essa pessoa não tem quem a ame?
Vi que seu pai, numa atitude bonita, abaixou-se e explicou calmamente algo no ouvido da criança. Muito brevemente. E foram embora. Mas a criança ainda se virou para olhar a impactante cena novamente. A mesma que os exuberantes “atletas” da orla tão facilmente ignoram.
Foi então que me dei conta de que os adultos que agem de forma indiferente um dia talvez tenham se impactado com a cena. Mas deixaram essa perplexidade morrer e a indiferença triunfar.
Um homem baixinho e alegre que ajudava uma barraqueira da praia pede roupas usadas a um cliente, depois deste pagar à senhora. O cliente lhe pergunta se não recebe salário da patroa. E então o simplório homem diz que trabalha há 20 anos lá e nunca teve carteira assinada. A mulher se revolta e entra na conversa, dizendo que ele só ajuda, mesmo assim apenas quando quer: “ontem à tarde onde você esteve?”. Passam-se alguns dias. O homem não está mais lá. Teria botado a mulher na justiça? No lugar dele, outro faz a mesma coisa: cava a areia para fincar os guarda-sóis, dispõe as cadeiras em ordem, atende clientes, entregando seus pedidos, e ainda, com vista aguda e passo rápido, capta outros clientes entre os que caminham pela areia da praia. Uma “simples” ajuda.
Outros falam do Sul quase como sendo Xangri-Lá: “lá não teve essa mistura”. Eu defendo a miscigenação, evoco Jerônimo de Albuquerque e Muirá Ubi. Mas o choque diante do primarismo de pensamento e do preconceito é inevitável.
Seu Carlos, na Pracinha de Boa Viagem, educado e sorridente, disse-me que, depois de Deus, só a bebida. Estranhei. Ele explicou: às vezes é a bebida que impede um de cometer uma tragédia, se jogando no meio dos carros e pondo fim à própria vida.
Mas há uma esperança. Não a dos bonés laranjas, dentre os quais parece haver os que consomem tapioca com café sem pagar e abordam ciclistas pardos e pobres, que têm de vasculhar o celular para encontrar uma prova (talvez uma foto) de que a bicicleta não foi roubada.
A esperança é o pensamento abrigado na mente do morador de rua Lucas: conseguir um lugar, como um desses prédios enormes, em que moradores de rua e viciados em drogas pudessem se abrigar. Tomar banho, ter o que vestir, fazer as refeições. Ter uma vida digna.
A Força do sonho que habita a mente desse morador de rua só não é maior do que a ambição de um prefeito que quer ser governador, mas até hoje foi incapaz de perceber a crueldade de deixar os banheiros da orla de portas trancadas e luzes acesas, enquanto alguns de nossos irmãos dormiam, até ontem, sob as beiradas dos quiosques, açoitados pelas chuvas e pelos ventos de agosto.
Mas, silêncio! Os ególatras que enxergam inveja em toda expressão alheia de estranhamento diante dos absurdos desse mundo podem ouvir. E seus egos serão massageados de uma forma tão alucinante que irão se contorcer de prazer. Mas irão erguer torres de marfim ainda mais altas e castelos de cristal ainda maiores, tão exuberantes quanto insanos, em derredor de si. Esquecendo que todos vivemos, em suma, na mesma taba.
*Bacharel em Direito
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