Lula falou em três medidas de crédito, mas só uma é conhecida: a repaginação do consignado para trabalhadores formais do setor privado. A iniciativa, que pode ser enviada ao Congresso depois do carnaval, é considerada estruturalmente positiva, porque vai destravar essa modalidade de crédito com o aprimoramento da garantia da operação.
O empréstimo consignado permite o desconto diretamente na folha de pagamento, o que reduz risco de inadimplência e permite juros mais baixos. Essa modalidade é pouco usada no setor privado, sendo mais comum no setor público e entre aposentados do INSS.
Atualmente, a linha é subutilizada pois depende de um convênio entre os empregadores e os bancos, o que limita o acesso a trabalhadores de grandes empresas. Ainda assim, há receio das instituições financeiras, já que a pessoa pode ser demitida ou sair da empresa.
Crédito pode triplicar
O governo vai montar uma plataforma dentro do eSocial, sistema do governo em que as empresas registram as informações de seus funcionários. Dessa forma, as instituições financeiras vão se conectar à plataforma e ter acesso a algumas informações para melhorar a análise de crédito.
Atualmente, o consignado privado tem taxa média de juros mais baixa do que o crédito pessoal: 40,8% ao ano contra 103,4%. A previsão é que os juros caiam mais na nova versão, mas fiquem acima do consignado do INSS e do setor público, de 21,9% e 23,8%, respectivamente.
A expectativa é que o estoque de crédito do consignado privado triplique com a mudança, chegando a R$ 120 bilhões. Esse salto pode impulsionar a atividade, como quer Lula, o que representaria um movimento na direção contrária ao esforço do BC para controlar a inflação.
Executivos do setor financeiro avaliam que deve haver migração de linhas mais caras para o consignado privado, considerando que a proposta vai ter um incentivo para essa troca. Mesmo esse movimento de migração, contudo, já pode aumentar o saldo devedor, uma vez que haverá menos juros e mais prazo, avalia um interlocutor do setor bancário.
Mesmo que em menor escala, há também expectativa de um avanço das concessões em geral. Nesse caso, o executivo do setor bancário avalia que seriam as pessoas que não têm dependência de crédito, mas com boas condições para poderem decidir pegar um empréstimo para fazer uma viagem ou reformar a casa.
Há ainda um terceiro movimento esperado que é abrir espaço na carteira não consignada por aqueles que migraram para o novo modelo.
Foco na inflação
Para o interlocutor, a medida tem potencial, mas seu sucesso depende de ambiente econômico estável, senão os bancos podem se retrair.
Para Alessandra Ribeiro, economista e sócia da Tendências Consultoria, a medida faz sentido para dar as mesmas condições dos aposentados e do funcionalismo público aos trabalhadores do setor privado. Para ela, a nova versão tende a segurar um pouco mais a desaceleração do crédito prevista para 2025.
Sem a medida, a Tendências espera que as concessões do consignado cresçam 2,2% este ano, contra um avanço de 16,1% em 2024. Para o crédito a famílias, a expansão esperada é de 1%.
— Uma medida como essa pode fazer com que essas concessões sejam mais fortes. Em vez de 2,2% para o consignado, pode chegar a 3% — disse a economista. — A medida em si faz sentido para ter nova possibilidade de crédito com condições atraentes para tomador. O timing é delicado nesse esforço do BC de trazer inflação mais para baixo.
Um técnico do governo avalia que a nova versão do consignado privado pode ser particularmente importante para os trabalhadores com carteira assinada de baixa renda, como alternativa à antecipação do saque-aniversário do FGTS, já que essa parcela da população costuma ter um saldo menor no fundo. A antecipação do saque-aniversário tem baixo custo, de 1,8% por mês (23,9% ao ano).
Outro interlocutor da equipe econômica reconhece que o desenho da medida é positivo, mas afirma que o foco principal neste momento não deveria ser a redução do risco de crédito, e sim a inflação. Por isso, considera que a medida não deveria ser anunciada neste momento, com risco de o BC ficar “enxugando gelo” na política monetária.
Endividamento preocupa
A taxa Selic está subindo desde setembro e passou de de 10,75% a 13,25% ao ano, com a perspectiva de chegar a 14,25% em março. Com o movimento, o BC busca reduzir o ritmo de crescimento da economia para levar a inflação, hoje acima do limite superior da meta (4,5%), para o alvo de 3%.
Consultado, o Ministério da Fazenda afirmou que o modelo a ser adotado ainda está em fase de elaboração interna, por isso não fará comentários neste momento.
Rafael Schiozer, professor da FGV-SP, diz que é preciso ter atenção ao desenho da modalidade, para que o “feitiço não vire contra o feiticeiro” em termos de endividamento da população. O endividamento das famílias vem caindo desde o pico em 2022 (49,9%), mas continua em nível alto (48,2% em novembro de 2024):
— O crédito como motor da economia tem um papel limitado. Não consegue sozinho fazer a economia crescer por muito tempo de maneira sustentada. Em 2015-2016, foi um dos fatores que levou à recessão. Tudo depende da oferta de crédito adicional. Se for excessiva, vamos observar o que aconteceu em 2014.
Juliana Tomaz, gestora de crédito da Asset Management Warren, concorda.
— Para mim, o momento de lançar esse tipo de medida não parece o mais adequado.
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