A geração que canta o amor, infelizmente, está dando adeus. “Como eu morro de amor para tentar reviver”, cantou Nana Caymmi, que fez a última viagem aos 84 anos, na última quinta-feira, em pleno Dia do Trabalhador. O amor, para ela, terminava no escuro, sozinho. Certa vez, perguntou: “De que é feito o amor? E ela própria trouxe a resposta: “O amor é feito de paz, une dois corações. Ninguém tira, ninguém apaga”.
Adorava Nana. Chorava toda vez que ela cantava “Resposta ao tempo”: “Batidas na porta da frente /É o tempo /Eu bebo um pouquinho pra ter argumento /Mas fico sem jeito calada, ele ri /Ele zomba do quanto eu chorei /Porque sabe passar /E eu não sei”. Nana não cantou o amor. Ela era o próprio amor, nas visões que o amor dava a ela.
Casou-se quatro vezes. Do primeiro amor, por quem foi traída, teve duas filhas e um filho. Separada, se apaixonou por Gilberto Gil e depois por João Donato. Seu último amor foi o cantor e compositor Claudio Nucci, mas depois nunca deixou de circular na mídia com alguns namorados ocasionais. Detestava a solidão. “Eu tenho muita saudade do tempo que amei”, contou, já vivendo a maturidade, sozinha, sem ninguém para dividir a vida e as emoções.
Leia maisNana Caymmi morreu traída pelo coração. A taquicardia do amor tirou a sua vida. De tanto cantar e viver o amor, o coração não suportou. Ela também ensinou a amar: “Se outro alguém te lembrar de nós dois /Não diz pra esse alguém /O que passou e ficou pra depois”. Criada desde o nascimento num ambiente musical, a vocação de Nana floresceu cedo.
Também pudera! Quem eram seus pais? Dorival Caymmi, compositor, cantor e violonista, e Stella Maris, cantora de voz aveludada. Dois sabiás não podiam gerar algo melhor para encantar os corações dos seus fãs. Com apenas seis anos, Nana gravou “Acalanto”, em 1960, em dueto com o pai. Era a canção de ninar que o pai fizera para ela, dos imortais versos “Boi da cara preta /Pega essa menina que tem medo de careta”. Ouvindo Nana, aprendi que o meu amor só crê, não tem fronteiras, chega de longe, faz sonhar tudo, levando o universo ao léu.
Acompanhei Nana em seus melhores momentos. Em 1998, ela encantou o mundo com o CD “Resposta ao tempo”, canção homônima de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, escolhida como tema musical de abertura da minissérie “Hilda Furacão”, da TV Globo, de autoria de Glória Perez, baseada no romance homônimo de Roberto Drummond. No mesmo ano, “Fascinação”, outra grande interpretação dela, tornou-se tema de abertura da novela Fascinação, no SBT.
Nana foi, sem dúvida, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, com uma carreira que abrangeu várias décadas e estilos. Seu repertório incluiu boleros, sambas, sambas-canção, bossa nova e MPB de diferentes épocas. Ao longo de sua carreira, notabilizou-se por sua habilidade em interpretar músicas de compositores de peso, como Tom Jobim, Chico Buarque e Caetano Veloso, com uma voz marcante e uma interpretação única.
Ela também ajudou a perpetuar o legado de seu pai, Dorival Caymmi. Deu uma bela interpretação a “Só louco”, samba-canção de 1956 do pai, com cordas e contornos jazzy de guitarra, lançada por ela em seu LP de 1975. Um clássico dos shows da cantora. Em “Balanço Zona Sul”, um de seus mais recentes discos, de 2019, prestou uma homenagem a Tito Madi, cantor e compositor do samba-canção que influenciou a bossa nova com esse e outros balanços.
Já em “Cais”, uma das grandes obras de Milton Nascimento, feita especialmente para a trilha da novela “Sinal de alerta”, interpretou com toda a dramaticidade e virtuosismo que se possam exigir de um artista. Em “A noite do meu bem”, de Dolores Duran, foi premiada pela melhor interpretação. Outra grande interpretação se observa em “Voz e suor”, acompanhada pelo piano de Cesar Camargo Mariano.
Apaixonada por boleros, a cantora gravou discos dedicados ao gênero a partir dos anos 1990, e conseguiu extrair novidades até mesmo de muitas canções batidas e reprisadas, como “Solamente uma vez”, do mexicano Agustín Lara. Em “Mudança dos ventos”, canção de Ivan Lins e Vitor Martins, deu sensualidade e beleza. E veio a dar título a seu ousado LP de 1980, no qual ela ainda gravou Djavan (“Meu bem querer”) com o Boca Livre.
Não era fácil amar Nana Caymmi à primeira vista. Seu canto vinha de um lugar sombrio, antigo, sem adorno. E sua presença, embora imensa, dispensava afetações. Em um cenário musical que tantas vezes premiou o entusiasmo e a docilidade, Nana atravessou décadas com o olhar direto, a voz firme e uma espécie de soberania silenciosa que causava desconforto — especialmente nos desavisados.
Ela não cedia, não suavizava, não fazia questão de ser bem compreendida. Essa mesma franqueza que moldava sua interpretação — densa, contida, quase teatral em sua contenção — também se manifestava sem filtros na fala. Ao longo dos anos, em entrevistas raras e intensas, soltou frases que desconcertaram repórteres, dividiram opiniões e reafirmaram o que todos que a conheciam já sabiam.
Nana não media palavras porque nunca precisou pedir licença para existir. Era como cantava — dura na superfície, mas abissal por dentro. E talvez por isso tenha sido tantas vezes mal interpretada, ou simplesmente temida. Deixou frases lapidares: “Sou águas passadas”, ao falar de sua distância do cenário da música atual. “Elis não podia ver uma cantora nova que se arrepiava, ao comentar sobre o temperamento competitivo de Elis Regina.
“Tem gente que canta bonito. Eu canto verdade”, disse, ao falar sobre o que distingue uma intérprete de uma cantora. Suas frases ficam como fragmentos de uma personalidade indomável, pedaços de uma artista que se recusou a performar simpatia, que escolheu a sinceridade ainda que a contragosto do público, da crítica, da indústria.
Como suas canções, essas palavras carregam uma tensão antiga: entre a dor e o orgulho, entre o riso seco e o abismo. Leia-as com o mesmo respeito que se ouve um silêncio carregado — porque, em Nana, até o silêncio dizia algo.
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