De todos os consagrados compositores de Luiz Gonzaga, que vêm sendo retratados neste espaço das crônicas domingueiras, dois não se encantaram pelas belezas do “Sul maravilha”, onde o Rei do Baião foi obrigado a criar raízes, longe do seu pé de serra em Exu, para mostrar seu talento ao mundo: Onildo Almeida, que nunca arredou o pé de sua Caruaru, e Zé Marcolino, autor de grandes sucessos, como Sala de Reboco e Cacimba velha.
Zé Marcolino ainda chegou a ser seduzido pelo famoso sanfoneiro quando o conheceu em 1961, em Sumé, seu torrão natal na Paraíba, depois de enviar dezenas de cartas oferecendo algumas das suas canções para ele gravar. Não pensou duas vezes e partiu em disparada para o Rio de Janeiro, na boleia do Velho Lula, com quem selaria uma produtiva e emocionante parceria musical por muitos anos.
Mas foi uma curtíssima temporada em solo carioca. Matuto que se preza, como era o bem autêntico Zé Marcolino, não aguenta o rojão e os agitos de cidade grande, drama para ele revelado no xote “Matuto Aperreado”, gravado por Luiz Gonzaga, no qual ele descreve bem como se sentiu na cidade grande: “Fico doido com tanta fala de gente e a zuada de automóvel a me assustar. Se na rua vou fazer um cruzamento, tenho medo, eu num posso atravessar desse jeito, sou franco em dizer, mas um dia eu aqui não posso mais ficar”.
Leia maisApesar dos apelos do rei, que se encantou com o talento do poeta paraibano, que falava mastigando poesia, Marcolino fez o caminho inverso de todo nordestino: como a “Asa Branca”, bateu asas em disparada ao seu ninho. Nunca mais botou os pés no Rio e em nenhuma cidade grande. Mas o tempo em que voltou a despertar da cama cedo, com o canto dos pássaros, fazer acordes de vaqueiro, pegar boi brabo na caatinga e usar o mandacaru como símbolo, compôs grandes canções para Luiz Gonzaga.
No LP “A Triste Partida”, pouco tempo depois, Luiz Gonzaga gravou de Zé Marcolino a belíssima Cacimba Nova: “Fazenda Cacimba Nova/ Foi bonito o teu passado/ Ainda estás dando a prova/ Pelo que vê-se a teu lado/ Um curral grande, pendido/ Um carro velho, esquecido/ Pelo sol todo encardido/ Sentido, sem paradeiro/ Falta de juntas de bois/ Que lhe levavam de dois/ Obedecendo ao carreiro”.
Também gravou “Maribondo”, “Cantiga de Vem-vem” e “Numa sala de reboco”, um dos seus maiores sucessos: “Todo o tempo quanto houver pra mim é pouco/ Pá dançar com meu benzinho numa sala de reboco/ Enquanto o fole tá fungando/ Tá gemendo/ Vou dançando e vou dizendo o meu sofrer pra ela só/ E ninguém nota que eu tô lhe conversando/ E nosso amor vai aumentando/ E pra que coisa mais mior’?”.
José Marcolino Alves nasceu em Sumé, na Paraíba, berço da poesia do Pajeú e do Cariri nordestino. Filho de pai cearense e mãe paraibana, Zé Marcolino se apaixonou por Maria do Carmo Alves, com quem subiu ao altar em 1951. O lindo e prolongado romance resultou em sete filhos — Maria de Fátima, José Anastácio, Maria Lúcia, José Ubirajara, José Walter, José Paulo e José Itagiba.
Antes de voltar definitivamente para o Sertão, morrendo de saudade do cheiro da sua terra e da sua gente, Zé Marcolino assistiu Luiz Gonzaga gravar, em 1962, no estúdio da RCA, o repertório do disco “Véio Macho”, com metade das 12 faixas com composições de autoria dele. Indagado durante uma entrevista no Rio se pretendia ser apenas compositor, Marcolino respondeu: “Seu Luiz Gonzaga, na vinda aqui para o Rio, apresentou-me como cantor em Paulo Afonso (BA). Quer que eu cante aqui também. Vou ver se tenho coragem para isso”.
Em Sumé, Zé Marcolino também voltou a fazer o que gostava: vaqueiro, pedreiro, barbeiro e compositor. Das suas profissões, qual a que rende mais?”, quis saber um repórter. “Acho que é a de vaqueiro. Vender gado é um bom negócio”, atestou. Zé Marcolino voltou ao Sertão depois de uma temporada de shows com Luiz Gonzaga que acabou no Crato (CE).
Pegou um ônibus para Campina Grande e de lá foi de táxi até Prata (PB) para o reencontro logo com a família. Ali, residiu até 1973. De lá, foi para Juazeiro (BA) e ficou até 1976, quando regressou para Serra Talhada (PE), onde morou pouco tempo. Era extremamente inteligente, bem-humorado e observador, com uma memória privilegiada.
Carregava versos nas veias como a caatinga do Sertão está para seu habitat natural. Não fazia por dinheiro ou reconhecimento, mas porque aquilo revelava o que sua alma podia transformar em arte, em poesia. Mais de 50 músicas de sua autoria foram gravadas por Luiz Gonzaga e diversos outros cantores. Sua simplicidade era peculiar. Ninguém sabia contar causos políticos e histórias engraçadas do Sertão como ele.
Então empresário têxtil em Sertânia, Jarbas Guimarães, ex-presidente do Sport, ficou encantado com Zé Marcolino quando o conheceu. O primeiro encontro resultou numa grande amizade. Nas festas animadas da fazenda de Jarbas em Sertânia podia faltar tudo, menos a poesia, as histórias e o canto romântico do trovador Marcolino. No início dos anos 1990, fui lá uma única vez e me encantei também por Marcolino. Tudo girava em torno dele. Era o astro dos saudosos churrascos de Jarbas.
Por ironia do destino, o matuto que temia atravessar as movimentadas ruas do Rio de Janeiro, morreu num acidente de carro em 19 de setembro de 1987. Seu motorista, ao tentar desviar o carro de uma vaca que atravessava a rodovia em Carnaíba, no Sertão do Pajeú, perdeu o controle e capotou. Marcolino estava na companhia do filho Ubirajara Marcolino, que sofreu apenas leves escoriações, enquanto o pai sofreu fratura no crânio. Chegou a ser levado para o Recife, mas faleceu nas proximidades de Vitória de Santo Antão, aos 57 anos de idade.
A poética de Zé Marcolino foi impregnada de nordestinidade. Nela, se viam as festas de São João, os causos de vaqueiros, as crenças populares, o canto dos pássaros e a forma simples de vida dos sertanejos. Seus versos têm a força da terra e do homem, exaltam a relação que se estabelece entre eles. Falam de um Sertão de aço, de um sertanejo bravo.
O “Caboclo nordestino”, cantado numa obra em que ele fez os versos e a melodia, Luiz Gonzaga gravou: “Caboclo humilde roceiro/ Disposto trabalhador/ No remexer da sanfona escuta este cantador/ Que no baião fala ao mundo teu grandioso valor/ E tu caboclo que vives com a enxada na mão/ Aqui nessa vida humana ninguém é melhor do que tu/ Escuta esta homenagem de um cabra do Pajeú.”
Em uma das suas canções, ele fala das dificuldades de sobreviver longe do seu Sertão: “Se Deus quiser/ Vou-me embora pro sertão/ Pois a saudade me aperta o coração.” Outra bela canção, “Pássaro Carão”, em ritmo de baião, ele diz: “Pássaro carão, cantou, anum chorou também/ A chuva vem cair no meu sertão/ Vi um sinar’, meu bem, que me animou também/Ainda ontem eu vi pólvra’ no chão”.
Dentro do repertório de Luiz Gonzaga, quem não se emociona quando ele abre o vozeirão e canta “Serrote agudo”, de Zé Marcolino: “Passando em Serrote Agudo/ Em viagem incontinente/ Vendo a sua solidão/ Saí pesando na mente/ Eu vou fazer um estudo/ Pra lhe contar a miúdo/Quem já foi Serrote Agudo/ Quem está sendo no presente”.
Marcolino deixou um vazio poético no Sertão, pois fazia uma música atávica, com muito da poesia oral da região, rica em repentistas e glosadores. Soube, assim, criar grandes melodias para suas letras. Ele não tinha conhecimento musical. Fazia a coisa intuitivamente, mas com muita certeza, muito preciso na afinação.
Era, por fim, um camarada que retratava dentro da sua poesia a ambiência, a ecologia, o comportamento brincalhão satírico do homem nordestino com muita qualidade. Buscava inspiração nos elementos da natureza, no canto dos pássaros, no comportamento do fura-barreira, do pássaro que fica em cima da estaca, fazendo a tapia para o menino que atira nele com a baladeira.
Luiz Gonzaga tinha cheiro de bode. Zé Marcolino, o perfume do angico, da aroeira e da baraúna. Tem ainda a sabedoria do pássaro carão, que dá sinais da chegada da chuva no Sertão.
Leia menos