Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Durante a conferência dos países socialistas em Moscou, em 1957, o líder chinês Mao Zedong discursou na contramão da diplomacia do Kremlin, dizendo não temer uma guerra nuclear. Os soviéticos desejavam conviver sem turbulências com o Ocidente. Mao destoou:
“Não devemos ter medo de bombas e mísseis atômicos. Não importa o tipo de guerra que possa vir […], vamos vencer. Quanto à China, se os imperialistas deflagrarem a guerra contra nós, podemos perder mais de 300 milhões. E daí? Guerra é guerra. Os anos vão passar, e vamos trabalhar para produzir mais bebês do que nunca”.
Apavorados com a ousadia do chinês, os soviéticos se incomodaram. O líder comunista tcheco Antonin Novotny se queixou: “E quanto a nós? A Tchecoslováquia só tem 12 milhões de pessoas. Iríamos perder todo mundo em uma guerra. Não sobraria ninguém para começar outra vez”. Mao fez cara de paisagem.
Leia maisO episódio está detalhado no livro “Sobre a China”, de Henry Kissinger, lançado há 14 anos, mas tão atual que chega a dar arrepios. Na época em que o livro saiu, apenas os iniciados de Wall Street e os superdiplomatas tinham em mente o que viria pela frente. Kissinger era um deles. Muito mais do que um burocrata a serviço dos Estados Unidos, tinha visão de estadista, fazia política nos bastidores e nunca quis passar pelo teste das urnas. Seu poder estava na capacidade de influir, convencer e, especialmente, antever.
Kissinger foi o grande artífice da aproximação entre a China de Mao Zedong e a América de Richard Nixon, sofredora das sequelas de uma guerra travada aos trancos e barrancos com os vietnamitas. Ao longo dos últimos milênios, muitos brigaram com a China, poucos venceram e assim mesmo foram vitórias temporárias, como aconteceu com os mongóis, os ingleses e, mais tarde, com os japoneses. O Império do Meio, uma civilização com mais de cinco milênios, não adota a cultura expansionista. Com seus 9,5 milhões de km², os chineses focam na sua terra.
Donald Trump decidiu fazer guerra comercial contra os chineses sabendo de todos os riscos. De cara, saiu em desvantagem, porque seu prazo de validade como governante é curto, enquanto Xi Jinping tem todo o tempo do mundo, lidera uma China transformada na maior economia do mundo e não precisa fazer política para agradar eleitor. Seu espírito é o mesmo de Mao. Quem leu a edição do Wall Street Journal da última quinta-feira (24), viu o quanto os chineses se prepararam para este momento de confronto.
O homem que enfrenta Trump vem de longe. Acostumou-se desde cedo a viver fora da zona de conforto. Seu pai era Xi Zonghxun, ex-chefe de propaganda do Partido Comunista Chinês, ex-vice-primeiro-ministro e ex-vice-presidente do Congresso Nacional do Povo. Na época da grande fome, em 1963, Xi Jinping tinha 10 anos quando seu pai caiu em desgraça e foi mandado para o interior. Perseguida, a família de Xi teve sua casa invadida e depredada durante a revolução cultural. Uma de suas irmãs se suicidou, tal o desespero.
Seu pai foi preso e Xi Jinping, 16 anos, enviado para um vilarejo onde vivia numa caverna. O sujeito comeu o pão que o diabo amassou, deu a volta por cima e virou o Mao Zedong do século 21. Difícil dobrar um homem obstinado como Xi Jinping. Está cada dia mais claro que esta será a batalha mais dura de Donald Trump e seu desfecho é incerto, com risco de impeachment mais adiante.
O Ministério das Relações Exteriores Chinês postou nas redes sociais a famosa frase de Mao: “Nós somos chineses. Não recuamos”. Há uma campanha em curso na China focada no confronto com Trump. O inimigo não é os Estados Unidos.
No início do mês, chineses deram uma amostra grátis da sua capacidade de reação ao realizarem em só sete minutos uma transferência de dinheiro entre Hong Kong e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, pelo sistema RMB. Fizeram uma espécie de Pix internacional, criando uma alternativa ao sistema Swift criado pelos norte-americanos nos anos 1970, cuja demora para fazer o mesmo serviço varia de três a cinco dias. E a garantia? A garantia é o dinheiro na conta e ponto final. Se não for assim, não funciona. Mostraram ao mundo que há vida sem o dólar.
O sistema de poder chinês tem uma grande vulnerabilidade: a segurança alimentar. A fome é um fantasma exorcizado há mais de 60 anos, quando milhões de chineses morreram de inanição. Ninguém sabe ao certo quantos. Estimativas falam em mais de 50 milhões de mortos de fome e casos de canibalismo foram relatados. Resolveram este problema investindo pesado em agrobusiness e hoje são os grandes clientes dos maiores produtores de comida do mundo, entre eles o Brasil.
Mao ensinou os chineses a viverem fora da zona de conforto, como aconteceu com Xi Jinping e sua família, enquanto o Ocidente mimava seus eleitores com welfare state, encurtando as horas trabalhadas e aumentando os benefícios sociais, inclusive para os imigrantes. Os chineses nunca tiveram isso. Eles são 1,4 bilhão de pessoas, das quais 400 milhões são classe média. Só esta classe média é igual a uma União Europeia inteirinha ou dois Brasis. Trabalham com foco e disciplina.
Sob o comando de Xi, a China tem investido pesado nas suas relações com o mundo todo. Aqui, na América do Sul, a ocupação chinesa é visível, seja pelos produtos industrializados, seja pelos seus investidores atuando nos mais variados segmentos da economia. Enquanto os norte-americanos gradativamente abandonaram a América do Sul e o Caribe, a China fez diplomacia e investimentos como o megaporto de Chancay, no Peru, de US$ 3,5 bilhões e movimento de 1 milhão de contêineres por ano.
Agora, imagine o seguinte: os chineses querem ligar o Centro-Oeste brasileiro, de onde saem a melhor soja, o melhor milho e o melhor algodão do mundo, ao porto peruano, encurtando e barateando a chegada de grãos e matérias-primas. Este é um projeto que vai sair do papel, não porque o Brasil queira, mas pela necessidade da China, que detém uma posição estratégica na região muito mais importante do que a dos Estados Unidos. O resgate de Trump não se resume à reindustrialização, mas também aos aliados que foram ficando pelo caminho e esta é uma tarefa bem complicada.
Xi controla o poder com inteligência e firmeza. A China e a democracia tal como conhecemos são incompatíveis. Desde que Mao derrubou o antigo regime, em outubro de 1949, a forma como o poder é exercido na China é uma questão essencial de sobrevivência. Xi é um líder que, como Mao, ocupa a pista inteira. Não sobra nada para os adversários, cada vez mais raros, desde que ele se cercou de especialistas em segurança e propaganda. O risco de uma dissidência em massa é baixo.
O que Donald Trump fez ao impor uma guerra comercial foi tentar lutar contra a transferência de riqueza do Ocidente para o Oriente. Mas este é um movimento difícil de conter por vários motivos. O principal deles é a capacidade dos orientais em focar e buscar resultados. Isso está na formação, na alma das pessoas. Diferentemente dos ocidentais, não passam sua vida produtiva sonhando com a aposentadoria.
Xi Jinping é pragmático. Exatamente como Mao era. Um exemplo deste pragmatismo é relatado pelo próprio Mao no livro de Kissinger, queixando que Stalin não levou a sua revolução a sério:
“Quando estive em Moscou [dezembro de 1949], ele não quis concluir um tratado de amizade conosco e não quis anular o antigo tratado com o Kuomintang. Lembro que [o intérprete soviético Nikolai] Fedorenko e [o emissário de Stalin para a República Popular, Ivan] Kovalev me transmitiram o conselho [de Stalin] de empreender uma viagem pelo país para dar uma olhada. Mas eu disse a eles que tenho apenas três tarefas: comer, dormir e cagar. Não vim a Moscou só para dar os parabéns a Stalin por seu aniversário. Então eu disse, se vocês não estão interessados em concluir um tratado de amizade, que seja. Vou cuidar das minhas três tarefas”.
Trump ainda não entendeu que a China de Xi Jinping é imparável.
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