O ofício encaminhado como última cartada do ex-presidente Jair Bolsonaro para resgatar as joias apreendidas pela Receita Federal diz que “os bens foram ofertados ao presidente da República pelo reino da Arábia Saudita”. O documento obtido pelo Estadão foi enviado no fim do dia 28 de dezembro de 2022, no apagar das luzes da gestão Bolsonaro e é assinado pelo tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” de Bolsonaro.
O documento 736/2022/GPPR-AJO/GPPR é explícito em “determinar desde já que os bens sejam retirados” pelo primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva por ordem do gabinete do presidente, que se mudou para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro para não passar a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva.
O ofício envolve diretamente o presidente da República nas tratativas para reaver os diamantes. Foi dirigida ao ex-secretário da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, que, no mesmo dia, determinou à Superintendência da Receita em São Paulo, para que fosse acatada e as joias devolvidas.
Leia maisNo dia seguinte, um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) levou à Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo, o primeiro-sargento, com a missão de resgatar as joias de diamantes (um colar, um par de brincos, um relógio e um anel), avaliadas em 3 milhões de euros ou R$ 16,5 milhões.
Como revelou o Estadão, o presente dado pelo regime saudita foi apreendido pelo Fisco porque tentou entrar de forma ilegal, escondido na mochila do assessor do ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em outubro de 2021.
O Estadão encontrou o registro do voo da FAB que levou Jairo Moreira da Silva para São Paulo. A determinação foi dada pelo tenente-coronel Mauro Cid, que executava todas as ordens do ex-presidente, cuidava de seus papéis, discursos e demandas pessoais e o acompanhava praticamente o tempo todo, na rotina do Planalto, nas viagens e até nos debates presidenciais de 2022, dando sugestões, apresentando documentos e dados.

No Aeroporto de Guarulhos, o militar encontrou o servidor da Receita Marco Antônio Lopes Santanna. Chegou a mostrar a tela de seu celular, onde exibia a imagem de um documento direcionado “ao Sr. Julio Cesar”. Jairo dizia que estava ali para retirar “um material” retido na alfândega e que a própria chefia da Receita já deveria ter entrado em contato com a alfândega de Guarulhos. O documento apresentado fazia referência a um “Termo de Retenção de Bens” relacionado a joias.
De pronto, Santanna esclareceu que não tinha nenhuma informação sobre o assunto e disse a Jairo que não iria entregar nada. Preocupado, o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva deu início, então, a uma conversa pelo celular com alguém a quem se referia apenas como “coronel”. Na frente de Santanna, sugeria ao auditor-fiscal da Receita que ele conversasse com o seu “coronel”. Santanna, porém, resistiu novamente, e informou que não havia possibilidade de fazer aquele tipo de atendimento pelo telefone.
Jairo voltou a insistir. Disse ao fiscal que iria identificar o nome do responsável da Receita que trataria da liberação no aeroporto. Santanna explicou que o ofício do governo federal exibido no celular não estava direcionado a ele, mas ao chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes. O servidor voltou a dizer que não tinha nenhum conhecimento daquela operação e que, por se tratar da tentativa de retirada e incorporação de um bem, o processo teria de ser apresentado, formalmente, por meio de um “Ato de Destinação de Mercadoria”.
O emissário de Bolsonaro, porém, não estava disposto a sair do aeroporto sem as joias e tinha ordens para deixar o local apenas com o estojo nas mãos. Jairo exibiu, desta vez, um “Termo de Retenção” emitido pela Receita, na tela de seu celular, mas Santanna segurou a pressão e disse, categoricamente, que não teria como ajudar.
O militar, então, se exasperou. Disse que chegou àquela hora de Brasília e foi diretamente para a alfândega, porque cumpria uma missão “em caráter de urgência”. O auditor-fiscal pediu, então, que o documento fosse enviado para o e-mail corporativo da alfândega, mas Jairo disse que preferia aguardar orientações, porque o seu “coronel” iria falar com mais alguém.
Foi neste momento que o primeiro-sargento da Marinha comentou a troca de comando na Presidência da República, o que viria a ocorrer em apenas dois dias. Em sua tentativa de convencimento, Jairo disse ao agente da Receita que aquilo tudo fazia parte da troca de governo e que “não pode ter nada do antigo pro próximo, tem que tirar tudo e levar”.
Uma nova ligação tocou no celular do militar. Era Julio Cesar Vieira Gomes, o chefe da Receita, alinhado a Jair Bolsonaro. O militar sugere passar o celular ao auditor-fiscal. A ideia era que a liberação das joias fosse reforçada por Julio, mas o servidor Marco Antônio Lopes Santanna não atendeu ao telefone. Inabalável, negou a liberação e pediu que o militar entrasse em contato com o delegado da alfândega de Guarulhos. A ligação foi encerrada. O ex-secretário da Receita foi nomeado no dia 30 de dezembro de 2022 a adido da Receita em Paris.
Santanna pediu, então, ao militar que aguardasse uma resposta do delegado da alfândega de Guarulhos, com o devido Ato de Destinação de Mercadoria, mas voltou a frisar que, mesmo com a apresentação do documento, naquela circunstância, haveria muita dificuldade em acessar as joias. Jairo aguardou por algum momento, conforme foi orientado pelo servidor, mas logo depois desistiu e deixou o aeroporto, sem retornar ou contatar o auditor-fiscal. Terminava, assim, fracassada, a última de tantas tentativas de Bolsonaro de conseguir as joias.
Os registros oficiais da FAB mostram que o emissário do presidente voltaria a Brasília em um voo comercial, e não mais em uma aeronave da FAB. Caso tivesse conseguido retirar as joias, portanto, os itens entrariam pelo aeroporto de Brasília, fora de área da alfândega, e estariam nas mãos do presidente e de Michelle Bolsonaro.
Dos Estados Unidos, o ex-presidente Bolsonaro negou que tenha conhecimento sobre as joias, diz não saber do que se trata e que nada recebeu. Michelle Bolsonaro foi às redes sociais para ironizar o valor milionário do presente, disse não ter conhecimento dos itens e insultou a imprensa.
As joias seguem apreendidas até hoje no cofre da Receita, em Guarulhos.
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