No filme Central do Brasil, recordista de bilheteria em 1998, Fernanda Montenegro faz o papel, digno de um Oscar, da amargurada Dora, uma ex-professora, que ganhava a vida escrevendo cartas para pessoas analfabetas.
Suas “clientes” ditavam o que queriam contar às famílias que partiram em busca de um eldorado longe do Rio. Ela embolsava o dinheiro sem sequer postar as cartas. Um dia, Josué, o filho de nove anos de uma de suas clientes, acabou sozinho quando a mãe foi morta em um acidente de ônibus.
Leia maisEla relutou em cuidar do menino, mas se juntou a ele em uma viagem pelo interior de Pernambuco em busca do pai de Josué, que ele nunca conheceu. Um filme lindo!
Meu pai Gastão Cerquinha, que morreu há exatamente 30 dias, em Afogados da Ingazeira, aos 100 anos e sete meses, já fez também o papel de uma Dora, mas na vida real.
Diferente da Dora da ficção, meu pai escrevia, mas postava as cartas para os devidos destinatários ao final das suas escritas. Ele era servidor público federal dos Correios e como tal recebia uma legião de analfabetos, que pareciam desesperados em busca de dar notícias aos seus parentes, em São Paulo.
Garoto, ajudante de papai nos Correios, eu ficava observando nos olhos das pessoas a felicidade com o zelo do meu pai em cartas que, embora curtas, tinham textos cheios de afetos, criados para emocionar filhos, filhas e netos do remetente, a maioria em São Paulo, destino dos que debandavam do Sertão em paus de arara rumo à terra prometida.
Tudo isso me veio à memória na minha corrida matinal, hoje, de 8 km, pelas ruas de Afogados da Ingazeira, quando passei defronte ao velho e saudoso prédio dos Correios. Só agora, decorridas tantas primaveras, tenho a mais absoluta certeza de que comecei a despertar para o Jornalismo vendo papai escrever notícias em cartas que não eram suas, além de passar e receber telegramas.
A letra de papai encantava a todos, de tão linda, perfeita. Sua paciência em decifrar o que a matutada queria transmitir aos seus parentes deserdados só era comparável ao do personagem bíblico Jó. Fui até carteiro e pombo correio, quando Dinha, o carteiro oficial, exagerava na dosagem de água que passarinho não bebe.
Lá, ia eu bater na casa dos destinatários, que abriam suas portas e janelas com um sorriso largo de felicidade. Papai não gostava de escrever cartas ou passar telegramas dando notícias ruins. Dizia que as cartas mais difíceis de escrever eram as que falavam de assassinatos, da morte sangrenta nos campos secos do Sertão.
Papai não gostava também de uma palavra grosseira, uma expressão bizarra. Ensinou-me o caminho de belas frases. Frases de conforto diante de um fato que não se explica, diante de um mal que nos consome. Mais tarde, ao me viciar nos textos de Rubem Alves, compreendi que cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel.
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