Tais estatísticas, já por si só assustadoras, não conseguem captar a totalidade do problema, uma vez que grande parte dos estupros permanece fora dos registros oficiais por medo, vergonha ou desconfiança nas instituições de denúncia e acolhimento.
Embora a maior parte das vítimas sejam mulheres e meninas, o estupro de meninos e homens também é uma realidade concreta e muitas vezes ignorada. A invisibilidade dessa forma de violência está relacionada à cultura da masculinidade hegemônica, que exige dos homens o controle das emoções e a negação da dor.
Quando um menino ou homem é violentado sexualmente, o silêncio tende a ser ainda mais opressor, pois além do trauma, ele lida com a vergonha de se perceber vulnerável diante de uma sociedade que associa masculinidade à invulnerabilidade.
Os poucos dados disponíveis indicam que esse tipo de violência é subnotificado, silenciado por um sistema que falha em reconhecer a dor do homem violentado. É preciso romper com essa lógica, ampliando o debate e o acolhimento também para os homens vítimas de abuso.
Diante desse cenário, é fundamental que a sociedade reconheça uma realidade muitas vezes negligenciada: dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, revelam que, na Bahia, o número de homens vítimas de estupro aumentou 95% em dez anos — passando de 296 para 578 registros.
Esse crescimento expressivo evidencia não apenas a gravidade dos crimes, mas também o peso do silêncio imposto aos meninos e homens que sofrem violência sexual, frequentemente dentro do próprio lar, tendo como agressores pessoas próximas. Trata-se de uma prova clara de que a violência sexual não escolhe gênero — embora a sociedade insista em ignorar ou minimizar quando as vítimas são do sexo masculino.
Outro fator que agrava o quadro da violência sexual no Brasil é o perfil das vítimas, que são, em sua maioria, crianças e adolescentes entre 10 e 13 anos, sobretudo meninas negras. O agressor, na maioria das vezes, também é alguém próximo: pai, padrasto, tio, irmão, vizinho. O lar, que deveria ser um espaço de proteção, frequentemente se transforma no cenário do trauma.
As consequências são devastadoras: ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, dificuldades de aprendizagem e relacionamento, baixa autoestima, comportamentos autodestrutivos e, em casos extremos, o suicídio. As feridas são profundas e, muitas vezes, invisíveis aos olhos de quem não quer ver.
A violência sexual também tem impactos sérios na saúde pública. Um levantamento recente feito na Região Metropolitana de Porto Alegre revelou que a taxa de infecção por HIV chegou a 1,64%, ultrapassando em 64% o limite de 1% estabelecido pela Organização Mundial da Saúde para considerar uma epidemia sob controle.
O dado, publicado no site do Conselho Federal de Farmácia em 2025, acende um alerta sobre uma epidemia silenciosa que afeta, sobretudo, as populações em situação de vulnerabilidade — muitas vezes vítimas de violência sexual não diagnosticada ou negligenciada. Essas conexões entre violência, saúde mental, sexualidade e doenças mostram como o problema é sistêmico e exige respostas interligadas.
À luz dessas informações, é impossível ignorar a responsabilidade social da escola. Contudo, paradoxalmente, nos últimos anos, cresce no Congresso Nacional e nos discursos públicos a tentativa de silenciar os educadores por meio de projetos que proíbem o debate sobre gênero e sexualidade em sala de aula.
Essas propostas, muitas vezes travestidas de proteção à infância, na verdade impedem que crianças e adolescentes tenham acesso a informações fundamentais sobre seu corpo, seus direitos e os mecanismos de proteção contra a violência.
O discurso de que a escola ensina “ideologia de gênero” ou “estimula a homossexualidade” se apoia em mentiras ideológicas que fortalecem justamente a cultura do silêncio e da impunidade. Negar às crianças e adolescentes a possibilidade de aprender sobre limites, consentimento, afeto, diversidade e proteção é colaborar com o ciclo de violência.
A escola não deve, nem pode, se omitir. Ela é, para muitos alunos, o único espaço possível de escuta, proteção e informação segura. Quando bem orientada e acolhedora, a escola pode salvar vidas, identificar sinais de abuso, encaminhar situações de risco e formar uma geração mais consciente e respeitosa com os corpos e as emoções dos outros.
É papel dos professores, gestores e toda a comunidade escolar atuar de forma integrada na prevenção à violência sexual. Para isso, é essencial que os profissionais da educação tenham formação continuada sobre sexualidade, escuta ativa, direitos humanos e estratégias de acolhimento. Falar sobre sexualidade de forma responsável e ética não é incentivar o sexo, mas sim proteger as crianças.
Diante de tantas informações, histórias e realidades escancaradas, a pergunta que se impõe é inevitável: até quando vamos continuar silenciando? A cultura do estupro, sustentada pelo machismo e pela negação sistemática da dor alheia, precisa ser enfrentada com urgência e coragem.
Isso significa reconhecer, sem distinções, o sofrimento de meninas e meninos, mulheres e homens vítimas de violência sexual; garantir políticas públicas efetivas de prevenção e acolhimento; e, sobretudo, fortalecer a escola como um espaço legítimo de educação sexual crítica, ética e transformadora. Romper o silêncio é o primeiro passo para romper o ciclo da violência. A escola não pode ser um lugar de censura — deve ser um território de cuidado, escuta e emancipação.
*Professora em Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe
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