Por Flávio Chaves*
Na manhã silente em que me deparei com a imagem de um menino de olhos vivos, cercado de afeto e memória, entendi mais uma vez que a poesia não nasce apenas da palavra, mas da infância que a semeia. Era Carlos Pena Filho, com três anos de idade, ainda menino em terras portuguesas, posando para uma fotografia ao lado dos pais e dos avós. A imagem foi postada por sua viúva, Tania Carneiro Leão, guardiã da memória e do legado do poeta, que ali nos revelou também um desejo precioso: o de um museu dedicado a esse homem que viveu pouco, mas fez da vida uma eternidade poética.
Carlos nasceu em Recife, é verdade, mas passou parte fundamental da sua infância em Portugal, especialmente na Póvoa de Varzim, em Vila do Conde, onde o tempo parecia correr com a leveza de um fado e a sombra dos pinheiros sussurrava versos antes mesmo de ele saber escrevê-los. Viveu lá até os dez anos, tempo suficiente para fincar raízes em duas pátrias: a da origem e a da escolha. E foi essa dualidade afetiva que moldou sua sensibilidade, sua cadência verbal, o lirismo cristalino de seus poemas.
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Na fotografia reencontrada, postada por Tania, vemos o pequeno Carlos rodeado por seus ancestrais: Carlos Souto Pena, o pai; Joaquim Gonçalves Pena, o avô; Laurinda Rosa Souto Pena, a avó; Laurinda Souto Pena, a mãe, que carregava, como num espelho de sangue e afeto, o mesmo nome da sogra, sua tia. Ali, naquele retrato de 1930, já se desenha o destino de um homem que escreveria como quem se despede, mesmo quando chegava.
Tania, ao abrir seus arquivos familiares em busca de manuscritos, encontrou muito mais que papéis: encontrou um tempo suspenso. Como escreveu em sua comovente legenda:
“Temos um acervo imenso de documentos, fotos, recortes de jornais e muitos outros assuntos, de Carlos Pena. Daria um museu familiar.”
Sim, Tania. Daria e dará. Porque Carlos Pena Filho não pertence apenas à história de uma família, mas à memória mais lírica da literatura brasileira. Seu nome pulsa nas esquinas do Recife, como quem deixou um poema inacabado em cada madrugada.
Foi em Pernambuco, já moço, que Carlos fez morada definitiva. Aqui, entre bares, amigos, cafés e becos iluminados pela boemia e pela lucidez, ele ergueu seu altar de versos. Poeta de “Soneto do Desmantelo Azul”, de “A Morte Absoluta”, de “O Tempo da Busca”, Pena Filho é aquele que consagrou a cor azul como pátria espiritual, uma cor que, em sua pena, era metáfora de esperança, de sonho e de finitude.
Carlos Pena morreu jovem, aos 31 anos, num acidente de carro, deixando a cidade e os amigos em estado de luto lírico. Mas sua poesia, impregnada de elegância, ironia e saudade, continua viva — como aquele menino na fotografia, olhando de frente para o futuro, sem saber que, com o tempo, se tornaria eternidade.
A ideia do museu é, portanto, mais do que justa: é urgente. Que esse espaço venha a existir para abrigar seus manuscritos, suas fotografias, suas cartas, seus silêncios. Que ali, entre paredes e vitrines, possamos escutar o eco de seus versos, e ver aquele menino de Portugal atravessar o oceano para ser poeta no Brasil.
Porque Carlos Pena Filho não morreu, apenas mudou de lugar. Está na tarde que se debruça sobre o Capibaribe, no copo de uísque de um velho amigo, nos livros que ainda choram quando se abrem. Está, sobretudo, no azul, esse tom que só ele sabia dizer sem precisar nomear.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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