As mulheres aprisionadas na ocasião em que os maridos caíam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui têm chegado — numa transição brusca do lar mais ou menos feliz para uma praça de guerra, perdendo tudo numa hora — e não lhes diviso no olhar o mais leve espanto e em algumas mesmo o rosto bronzeado de linhas firmes e iluminado por um olhar de altivez estranha e quase ameaçadora. Uma delas acaba de ser conduzida à presença do general. Estatura pequena, rosto trigueiro, cabelos em desalinho, lábios finos e brancos, rugados aos cantos por um riso doloroso, olhos vesgos, cintilantes, traz ao peito, posta na abertura da camisa, a mão direita, ferida por um golpe de sabre.
— Onde está teu marido?
— No céu.
— O que queres dizer com isto?
— O meu marido morreu.
E o olhar correu rápido e fulgurante sobre os circunstantes sem se fitar em ninguém”.
O relato de Euclides da Cunha, no seu diário da chacina de Canudos, no interior da Bahia, do dia 26 de setembro de 1897, que inspirou o clássico da literatura brasileira “Os Sertões”, publicado em 1902 — o épico pungente da realidade tenebrosa do interior do país de então, o esplendor da nossa miséria, o afresco dos céus da Capela Sistina dos sertões brasileiros — emudeceu os humanos e assustou os insensíveis!
Quinze anos depois, agora no governo do general Hermes da Fonseca — o oitavo presidente da República e o terceiro militar — uma nova revolta camponesa (1912-1916) explodiu, desta vez no sudoeste do Paraná e noroeste de Santa Catarina: a região do Contestado, que deu nome à grande batalha, onde havia uma disputa territorial entre os dois estados.
Famintos, desesperados, expulsos das suas terras pela Brazil Railway — responsável pela construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul — e a madeireira Southern Lumber & Colonization, que veio logo em seguida em busca dos pinheirais e da erva-mate que brotava na região, de certo modo tentou escravizar aquela gente.
Liderados pelo místico José Maria — um similar do sul de Antônio Conselheiro, de Canudos. Com a morte de José Maria, Maria Rosa, de 15 anos; e o menino Deus, Joaquim, com 11 anos — este, porta-voz de José Maria — por meio de mensagens vindas do além, lideraram um exército de cinco mil sertanejos vencendo sete expedições militares. Claro, foram dizimados!
Teríamos mais! Em janeiro de 1912, numa violenta disputa entre as oligarquias da Bahia, Hermes da Fonseca — eleito presidente em 1910 —, atendendo a uma solicitação judicial, decretou intervenção no estado. Canhões do forte São Marcelo dispararam contra o Palácio Conde dos Arcos, que abrigava o arquivo e a biblioteca pública, destruindo mais de 30 mil documentos. Dos fortes de São Pedro e Barbalho, novos disparos atingiram o Palácio do Governo, a Câmara Municipal e a esquina da Sé. A Polícia Militar, o Exército e populares se engalfinharam na Praça Castro Alves e na Praça Municipal.
A República nunca teve exatamente ordem e menos ainda foi pacífica. Mas algo estava demasiadamente errado! O primeiro novo olhar foi para os sertões, “Os Sertões” revelados por Euclides da Cunha. O Brasil percebido, até então, era o Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais e a convergência simbólica do Rio de Janeiro. O Brasil profundo, a verdadeira nação desconhecida sinalizava e “exigia” a sua presença e atenção. A sua identidade nacional!
Naquele mesmo tenso 1912, Arthur Neiva e Belisário Penna, médicos-sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz, fizeram uma viagem científica por uma região do interior do Brasil: norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás. O relatório dessa expedição, naquele momento mais percebido e divulgado do que os relatórios da Comissão Cruls (1892-1896), — até porque tinham objetivos distintos —, de algum modo, demonizou a realidade de interior do país, inclusive, a do Planalto Central do Brasil, incluindo o Quadrilátero Cruls, onde seria edificada a nova capital do Brasil.
“(…) Enfim, a solidão, a miséria, o analfabetismo universal, o abandono completo dessa gente, devastada moralmente pelo obscurantismo, pelas abusões e feitiçarias, e física e intelectualmente por terríveis moléstias endêmicas. A raça atual dessa região é inaproveitável. É habitual dizer-se, e nós mesmo já temos cometido esse pecado, que o povo sertanejo é indolente e sem iniciativa. A verdade, porém, é outra. Ausência de esforço e de iniciativa dessa pobre gente é proveniente do abandono em que vive, e da incapacidade física e intelectual, resultante de moléstias deprimentes e aniquiladoras, cabendo nessas regiões, à moléstia de Chagas, à primazia desse malefício (…) falsas [as] informações dos que viajam por essas regiões, pintando em linguagem florida e imaginosa, quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta. Nós, se fôramos poetas, escreveríamos um poema trágico, como a descrição das misérias dos infelizes habitantes sertanejos, nossos patrícios”, escreveram em seu relatório Belisário Penna e Arthur Neiva, divulgado em 1916.
O documento, de fato, chamava atenção para os desafios, por exemplo, que Canudos e Contestado mostraram ao país. Entretanto, ele sugeria uma generalização de problemas sanitários, endêmicos e de salubridade que não se aplicava exatamente, por exemplo, ao Planalto Central do Brasil e, em particular, às regiões distintas que integravam o amplo estado de Goiás. As conclusões dos dois médicos-sanitaristas confrontavam o trabalho da equipe de Luiz Cruls, integrada por pesquisadores célebres e respeitados. O Planalto Central ali descrito, com elogiado rigor cientifico, não se coadunava com as compreensões de Penna e Neiva. Até porque eles não estiveram na região que ficou definida como o Quadrilátero Cruls.
O desconforto e o impacto do relatório dos pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, tiveram, entretanto, um outro efeito político. Mobilizou e organizou, pela primeira vez, a elite politica do estado de Goiás. Henrique Silva, militar e ex-integrante da Comissão Cruls, nascido em Bonfim (hoje Silvânia), já aposentado em 1917, fundou com o então deputado Americano do Brasil — de Bonfim como Silva — a revista A Informação Goyana.
Americano do Brasil, à época deputado federal por Goiás, ficou apenas um ano na direção da publicação com o seu conterrâneo. Em 1918, foi convidado pelo então presidente do estado de Goiás, João Alves de Castro, para ser secretário de Interior e Justiça. Mas continuou parceiro e colaborador do projeto até o seu falecimento em 1932.
Impressa e divulgada a partir do Rio de Janeiro, A Informação Goyana foi publicada, mensalmente, até 1935, quando faleceu Henrique Silva. A revista tinha como objetivo defender e divulgar a cultura, as tradições e as possibilidades econômicas do Brasil Central, de um modo geral, e do estado de Goiás, em particular. Havia um foco permanente na divulgação dos relatórios da Comissão Cruls, nas determinações constitucionais para a mudança da capital e no esclarecimento e defesa da salubridade, da qualidade climática, da qualidade das águas, da fauna e da flora do Brasil Central. Colaboraram com a revista Eduardo Sócrates, Campos Curado, Moisés Santana, Cora Coralina, Colemar Natal, José Carlos de Carvalho, Victor de Carvalho, Mário Vaz, Hélio Seixo, Jorge Maia, Francisco Ayres da Silva, Antônio Euzébio de Abreu, entre outros.
Alguns acontecimentos marcaram o Centenário da Independência do Brasil em 1922. A semana de Arte Moderna, em São Paulo, um dos eflúvios também de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, que foi visitada por mais de três milhões de pessoas e que foi montada na esplanada que surgiu no lugar do histórico Morro do Castelo. O ex-anarquista Astrogildo Pereira, numa cerimônia “secreta” na casa dos seus familiares em Niterói, fundou o Partido Comunista do Brasil.
Curiosamente, ou coincidentemente, 48 horas depois da fundação do potentado marxista, no dia 12 de maio, foi criado o Centro D. Vital, o maior e mais organizado centro de pensamento de direita no Brasil. Os deputados Americano do Brasil (GO) e Marcelino Rodrigues (MA), em 1921, apresentaram uma proposição legislativa determinando a edificação e lançamento da pedra fundamental da capital federal, no Planalto Central do Brasil, a ser inaugurada em 7 de setembro de 1922. Aprovada a proposta, foi devidamente acolhida pelo presidente Epitácio Pessoa.
O debate sobre a mudança da capital, independentemente dos relatórios da Comissão Cruls, do Instituto Oswaldo Cruz e da revista A Informação Goyana, pelo menos até a década de 1940 do século 20, nunca teve uma prioridade exatamente visível no debate público do país. Ele sempre existiu, sobretudo depois da República, no Congresso, nas instituições governamentais e em alguns espaços dos meios de comunicação de então.
*jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF e arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHGDF
Leia menos