Por Flávio Chaves*
Era um domingo de céu baixo e cheiro de chuva, desses que parecem suspensos no tempo, como se o mundo tivesse esquecido de acordar. A casa estava quieta, quase em silêncio, como se respeitasse um segredo que só ela conhecia. Acordei com aquele aroma antigo — o café coado na hora, vindo da cozinha como um chamado de infância.
Levantei devagar, guiado por esse cheiro que sempre foi bússola. Ela já estava de pé, como sempre esteve. Vestia sua bata florida, os cabelos presos num coque apressado, e os olhos… ah, os olhos traziam aquele brilho que só as mães conhecem — um brilho de quem viu a gente nascer, tropeçar, cair, levantar e recomeçar mil vezes.
“Fiz do jeito que você gosta”, disse, com um sorriso leve, colocando a garrafa de café sobre a mesa.
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Sentei-me diante dela, como tantas vezes na vida, com o coração quieto, mas algo dentro de mim dizia que aquele momento tinha um peso diferente. Talvez fosse a maneira como ela passou a manteiga no pão, com a delicadeza de quem acaricia o tempo. Talvez fosse o modo como ela me olhava em silêncio, como se soubesse algo que eu ainda não sabia.
Falamos pouco. Às vezes, o amor mora justamente nisso — naquilo que não se diz. Ela perguntou se eu estava cansado, se andava me alimentando direito, se eu ainda escrevia aquelas “coisas bonitas”. E quando disse isso, olhou fundo em meus olhos com um orgulho manso, como quem reconhece em cada linha escrita um pedaço da própria alma.
Ela não fingia entender. Ao contrário: era ela quem mais entendia. Lia por entre as entrelinhas, escutava o que estava escondido nos silêncios, sabia quando um texto meu estava escrito com lágrima, e quando era só o disfarce da palavra tentando fingir força. Ela era minha primeira leitora, minha crítica mais bondosa, minha melhor tradução.
A certa altura, olhou pela janela, respirou fundo e disse:
— “Você foi minha maior coragem.”
Fiquei quieto. Fui até a pia, lavei a xícara, voltei e beijei sua testa. Queria dizer tanta coisa, mas só consegui apertar sua mão com firmeza. Ela sorriu de novo. E naquele sorriso havia um adeus disfarçado de ternura, que só mais tarde percebi.
Naquela manhã, o café não era apenas café. Era rito. Era despedida em forma líquida, era eternidade servida em xícara simples. Foi a última vez que tomamos juntos o gosto da vida — ela de um lado da mesa, eu do outro, separados apenas por um fio invisível de eternidade.
Hoje, quando faço café, fecho os olhos e volto àquela manhã. E o cheiro não é mais só de café. É de colo. É de ausência. É de presença que ficou.
Ela partiu dias depois, sem alarde, como quem não quer incomodar. Mas deixou em mim um mapa invisível de ternura.
E toda vez que escrevo algo com a alma incandescida, ainda escuto sua voz dizendo:
— “Eu sabia. Eu sempre soube.”
Dedicatória
Para minha mãe —
minha estrela primeira, minha eternidade viva,
minha professora de silêncio e de amor.
Tua ausência só me ensinou o quanto tua presença era tudo.
E eu ainda te sinto, minha mãe, caminhando ao meu lado
pelos jardins da minha infância —
quando eu precisava seguir em frente e não sabia como.
Eu te amo com um amor que não conhece despedida,
e em tudo o que sou, tu permaneces viva, inteira, dentro de mim.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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