Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo
Especial para o Correio Braziliense
“Às três da madrugada de domingo (17/11/1889), enquanto a cidade dormia tranquilizada pela vigilância tremenda do governo provisório, foi o Largo do Paço teatro de uma cena extraordinária, presenciada por poucos, tão grandiosa no seu sentido e tão pungente, quanto foi simples e breve. Obedecendo à dolorosa imposição das circunstâncias… o governo teve necessidade de isolar o paço da cidade, vedando qualquer comunicação do interior com a vida da capital… Quando anoiteceu, foi fechado o trânsito pelas ruas que rodeiam… Um boato oficial… espalhara a notícia de que o Sr. D. Pedro de Alcântara (que se sabia dever embarcar para a Europa em consequência da revolução do dia 15) só iria para bordo no domingo pela manhã…
Às três horas da madrugada, menos alguns minutos entrou pela praça um rumor de carruagem. Para as bandas do paço, houve um ruidoso tumultuo de armas e cavalos. As patrulhas que passeavam de ronda reiteravam-se todas a ocupar as entradas do largo, pelo meio do qual, através de árvores, iluminando sinistramente a solidão, perfilavam-se os postes melancólicos dos lampiões de gás. Apareceu, então, o préstito dos exilados.
Nada mais triste. Um coche negro, puxado a passo por dois cavalos, que se adiantavam de cabeça baixa, como se dormissem andando. À frente, duas senhoras de negro, a pé, cobertas de véus, como a buscar caminho para o triste veículo. Fechando a marcha um grupo de cavaleiros, que a perspectiva noturna detalhava um negro perfil… Quase na extremidade do molhe, o carro parou e o Sr. Pedro de Alcântara apeou-se — um vulto indistinto entre outros vultos — para pisar pela última vez a terra pátria…”
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O texto de Raul Pompeia — abolicionista e republicano —, testemunha daqueles tempos, descreve, com excelência, como os monarquistas da véspera — Deodoro e Rui, republicanos de bica — trataram de enxotar Dom Pedro do Brasil. Temiam a liderança pessoal do imperador. Sabiam que os brasileiros — os cariocas em particular — não tinham exatamente um apreço pela República, assim como não aplaudiam o império ou qualquer outra forma de organização institucional da ordem. Mas tinham uma particular deferência e admiração por Pedro II, assim como tinham pela música, a religião e as celebrações.
Daí o golpe do dia 15 de novembro, o isolamento da família Real e o seu embarque, naquela madrugada, empurrando Dom Pedro, mar adentro, para nunca mais! Antecipava-se assim, no Brasil, a frase famosa de Tomasi de Lampedusa no seu clássico O Leopardo, de 1958: “As vezes, é preciso que tudo mude para que as coisas permaneçam como estão”.
Instituído o governo republicando provisório, fechados a Cadeia Velha e o Palácio Conde dos Arcos — onde se reuniam, respectivamente, os deputados e senadores do império —, dissolvidas as assembleias legislativas provinciais; transformadas as antigas províncias em estados que formariam, em seu conjunto, os Estados Unidos do Brasil, o novo governo se organiza, excepcionalmente, com uma nova Constituição e prepara as primeiras eleições para o Congresso Constituinte.
Em dezembro de 1889, foi nomeada a Comissão de Petrópolis — ou Comissão dos 5, como ficaria conhecida — para elaborar a Constituição Provisória da República, composta por Saldanha Marinho, Américo Brasiliense de Almeida, Luiz dos Santos Werneck, Rangel Pestana e Antônio Pedreira de Magalhães. A proposta da Comissão seria revisada e analisada por Rui Barbosa que deu forma ao Decreto nº 510, do dia 22 de junho de 1890. Um mês depois, esse mesmo texto seria revisado pelo governo provisório que o substituiu por um novo, o Decreto nº 914-A, de 23 de outubro de 1890. O anteprojeto Constitucional que seria encaminhado à Assembleia Constituinte.
O Decreto nº 78 B, de 21 de dezembro de 1889, determinou as eleições do novo Parlamento a realizar-se no dia 15 de setembro de 1890. A Assembleia Nacional Constituinte deveria iniciar seus trabalhos em 15 de novembro do mesmo ano, primeiro aniversário da República. Eleitos, os senadores e deputados, entretanto, iniciaram seus trabalhos, separadamente, no dia 4 de novembro de 1890, no prédio do Cassino Fluminense — palco dos grandes bailes da monarquia —, inaugurado em 1860 com a presença de Dom Pedro II, posteriormente sede do Automóvel Club.
A Assembleia Constituinte, entretanto, seria instalada no Palácio São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, sede da família real. Naquela ocasião o percurso entre o centro do Rio e a Quinta da Boa Vista, de charrete, demorava duas horas e meia. Algo em torno de seis quilômetros. A mudança incômoda tinha suas razões e apreensões políticas. O governo provisório havia restabelecido a censura à imprensa.
Não raro, milícias — eventualmente com o apoio direto do próprio governo — empastelavam jornais e destruíam redações. As eleições parlamentares haviam sido completamente fraudadas. Havia uma determinação direta do governo para que não fossem eleitos constituintes monarquistas. Nesse clima político, os parlamentares deviam ficar longe dos ouvidos e dos olhos do “povo”. A nova Constituição, assim como a República, nesses termos, foi oferecida para “os bestializados!”
Nem longos ou complexos os debates na Assembleia Constituinte de 1891. A pressão do governo provisório para a celeridade do processo era demasiada. A modelagem da federação, a autonomia politica, jurídica e financeira dos Estados era o ponto de tensão. As representações de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande Sul — então os estados mais ricos do país — arguindo a antiga centralização monárquica queriam a descentralização absoluta, o predomínio dos estados sobre o governo da União.
Nesse sentido, não havia nenhuma discordância sobre a necessidade política e administrativa da mudança da capital. A bancada do Rio de Janeiro era unânime na defesa da proposta. O deputado Thomaz Delfino, o mais entusiasta e ativo defensor da tese, em longos pronunciamentos, resumia bem o consenso que prevaleceu: “A capital da União Brasileira, creio que, isto na opinião geral, não deve estar colocada nem ao Norte, nem ao Sul, mas de modo a receber a influência de ambas as grandes divisões territoriais, num ponto central, traduzindo, assim, a nossa harmonia, a nossa confraternização e a nossa força… Lucramos nós, capital atual, com a mudança, política-administrativa e mesmo, comercialmente, porque na luta por nós próprios empenharemos mais atividades e mais esforço. Lucra a União, porque o seu governo estará firme, sem vacilação alguma, o seu Congresso livre e sem qualquer peia”.
Nesse tom, e com leves nuances, debateram o tema os parlamentares Oliveira Pinto, Clovis Bevilaqua, Virgílio Damásio, Elyseu Martins, Costa Machado, Pedro Américo, Urbano Marcondes, Lopes Trovão e Américo Lobo. O ponto mais sensível era o destino do Município Neutro, onde ficava a capital no Rio de Janeiro: seria incorporado pelo estado do Rio ou viraria um novo estado? A questão era mais uma apreensão do que uma ameaça política real.
Coube ao deputado Lauro Muller apresentar em plenário uma emenda, subscrita por 88 constituintes, que seria acolhida pela Assembleia: “Fica pertencendo à União uma zona de 400 léguas quadradas, situadas no planalto central da República, a qual será demarcada para nela estabelecer-se a futura capital da República”. Como justificativa da proposta ele anexou, por suficiente, a histórica Carta de Formosa, de 28 de julho de 1877, de Adolfo Varhagen, dirigida ao então ministro da Agricultura do Império, José Coelho de Almeida, descrevendo o lugar onde deveria ser edificada a nova capital. Essa emenda foi aprovada na sessão de 22 de dezembro de 1890.
Na tradição do processo parlamentar não teria sido Muller o autor da proposta, uma vez que a primeira assinatura era do deputado Tenente-Coronel Joaquim de Souza Martins (SP). A última sessão da Constituinte, por sua vez, em 23 de fevereiro de 1891, na redação final, faria duas pequenas mudanças. A primeira, de autoria do deputado Antônio Euzébio, altera o Art. 2.: “Fica pertencendo à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.000 quilômetros quadrados, a qual…”. A Comissão dos 21, que fazia a redação final do texto constitucional, mudou o termo “designar” do Art. 34 para “mudar”: Art.34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: 13 – Mudar a capital da União.
Na mensagem ao Congresso, de 15 de junho de 1891, o Marechal Deodoro da Fonseca solicita os meios para que, cumprindo a Constituição, fosse demarcado o terreno onde seria edificada a nova capital.
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