Por Bruno Brennand*
Certa feita, havia uma enorme fazenda com vários animais. Essa fazenda era administrada por um senhor chamado Jonas. Havia paz e uma tranquilidade até entediante naquele lugar, até que um determinado fato ocorreu: o Sr. Jonas apaixonou-se por uma rameira sagaz do baixo meretrício da cidade e resolveu sair com ela em uma lua de mel ‘sine die’.
Com a ausência do senhorio, os animais ficaram sem ninguém que cuidasse deles. O Porco-Mor, Alexandros, auxiliado pelo porco Barraozinho e outros da manada, entendeu que deveria, pelo bem maior, assumir a administração da fazenda. O Porco Velho, Beiçola, deu o aval. Passaram, então, a ditar regras não apenas de convivência, mas também de saúde, comportamento, comunicação, alimentação e até mesmo formas de lazer.
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Alexandros repetia a si mesmo: “É melhor assim, pois tudo ficará como antes, e ninguém precisa pensar no que é melhor para si, pois eu sou o mais inteligente e sei o que é melhor para todos.”
É evidente que, a essa altura, o leitor já percebe traços da obra A Revolução dos Bichos, de George Orwell, publicada em 1945, numa crítica direta ao totalitarismo, especialmente ao stalinismo. Contudo, o paralelismo aqui buscado é com o próprio Brasil. Não estamos muito distantes da fazenda do Sr. Jones de Orwell.
O Porco-Mor e sua cúria dominam toda a manada pelo medo, que, por ser numerosa, interfere nas demais espécies. O pato não pode nadar no lago, pois o Porco-Mor, a pretexto de evitar afogamentos, proibiu passeios aquáticos. As vacas não devem alimentar seus bezerros, mas antes atender os porquinhos; só o que sobra vai para os filhotes bovinos. Os imponentes cavalos não podem mais exibir seus trotes, apenas transportar alimentos para a suprema pocilga – um lugar que se assemelha a um sepulcro caiado, com uma estátua da Mãe Porca de batom à entrada.
As galinhas, responsáveis por divulgar notícias, só repetem o que o Porco-Mor permite. Por um punhado de comida, abdicam da verdade. Pior sorte teve o peru Neemias, que ousou questionar quem havia decidido que os porcos deveriam governar a fazenda. Foi apedrejado até a morte, sob os olhos passivos das aves lideradas pelo corvo Elias, que nada fizeram.
Os cães eram facilmente dominados com restos de comida. Tinham até permissão para alimentar-se dos condenados. Assim, tornaram-se os mais leais guardas do regime.
As fazendas vizinhas demonstravam nojo, repulsa e até certo alívio por estarem em situação melhor. Um dia, uma águia sobrevoou a fazenda do Sr. Jonas e pousou sobre a cabeça de um cordeiro. Perguntou por que os animais não se revoltavam. Estes responderam que tinham medo de punições severas. Faltava-lhes coragem ou quem os defendesse.
A águia declarou: “O medo é a matéria-prima do poder. A massa, ou seja, todos vocês juntos, pode agir para se libertar do medo.” Mas o coelho Joaquim retrucou: “Melhor assim. O medo já faz parte do nosso cotidiano.” Então, a águia citou um antigo texto sagrado:
“No deserto, toda a comunidade de Israel reclamou a Moisés e Arão. Disseram: ‘Quem dera a mão do Senhor nos tivesse matado no Egito! Lá nos sentávamos ao redor das panelas de carne e comíamos pão à vontade. Mas vocês nos trouxeram a este deserto para matar de fome toda esta multidão!’”
A águia finalizou: “O poderoso é aquele que ainda não foi tocado. O morto é aquele que já não pode se defender.” É necessário ruptura.
No romance A Revolução dos Bichos, George Orwell demonstra como o medo opera como instrumento de dominação, alinhando-se à leitura de Elias Canetti, em Massa e Poder. Os porcos, especialmente Napoleão, mantêm o controle por meio da manipulação simbólica, da violência e da ignorância forçada.
Canetti sustenta que o poder reside na capacidade de reter o medo dos outros, permanecendo inatingível – exatamente como Napoleão, que se cerca de cães de guarda e distorce os mandamentos da granja. Para Canetti, a massa verdadeira dissolve o medo do contato e atua coletivamente. Contudo, os animais de Orwell não alcançam essa consciência, permanecendo submissos.
A libertação, à luz de Canetti, exigiria a formação de uma massa solidária, o resgate da memória coletiva, o acesso à linguagem e a desconstrução do mito do líder. Sem isso, a revolução não passa de substituição de um opressor por outro – mais ardiloso, mais cruel e igualmente tirânico.
Em síntese, A Revolução dos Bichos revela como ideais revolucionários podem ser facilmente deturpados por estruturas autoritárias, sustentadas pelo medo, pela ignorância e pela manipulação simbólica. Orwell constrói uma poderosa alegoria sobre a degradação política, na qual os porcos, uma vez no poder, reproduzem os mesmos vícios que criticavam.
Ao relacionar a obra com os conceitos de Elias Canetti, compreende-se mais profundamente os mecanismos de dominação que mantêm os oprimidos em estado de inércia. No caso brasileiro – aqui figurado por Alexandros –, a realidade não se afasta da ficção. O medo ainda reina, o poder continua inatingível e a ruptura continua sendo a única via de esperança. No Brasil, a ficção é pura realidade.
*Advogado e Professor de Direito Constitucional
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