O tempo é um barco partindo, levando o que foi vivido. No bate-papo com meu amigo Edinho, no programa Frente a Frente, no qual participa espalhando humor com o personagem Jerimum, contei que meu tio Paulo Cerquinha, que Deus chamou para a morada celestial bem antes do seu irmão Gastão Cerquinha, meu pai, era o rei da banguela em Afogados da Ingazeira, dirigindo sua charmosa Rural azul.
No dicionário automobilístico, banguela é jogar o carro em ponto morto, ou seja, desengatar, desligando a chave do motor para economizar combustível. Meu tio Paulo não podia enxergar nem de longe uma ladeira e já jogava a Rural no ponto morto. Só religava quando já estava quase parando, na tentativa de economizar as últimas gotas de gasolina.
Leia maisAndei na Rural dele em dois momentos. Na Adolescência, quando papai dava uns trocados para ele nos levar no sítio Gangorra, estrada cheia de ladeiras, fortuna para suas banguelas. E, numa fase mais adiante, já correspondente do Diário de Pernambuco, no Sertão do Pajeú.
Na primeira fase, nem estava aí para as banguelas. Meus irmãos mais entendidos do assunto, como Marcelo, criado encangado comigo, me explicavam que tio Paulo precisava jogar o carro em ponto morto para as viagens ficarem mais em conta. Quanto menos consumo de combustível, mais lucrativas as distâncias percorridas.
Mas na segunda fase, muitas vezes perdi a paciência com meu tio. Jornalista está sempre na luta desigual contra o tempo. Em busca de notícias, eu tinha que voar, muitas vezes. E como voar um carro andando na banguela? Gentilmente, explicava para ele que já estava sendo cobrado pela matéria, porque havia o tempo do fechamento da edição do jornal.
Mas ele não estava nem aí. Além de não passar dos 80 km, não podia avistar uma ladeira. E tome banguelas! Certa vez, fui cobrir uma passeata de protesto contra a seca em Tabira, a 20 km de Afogados da Ingazeira. Naquela época, a estrada não tinha asfalto, cheia de pedregulhos, o que fazia a Rural andar mais lenta ainda. Tio Paulo fez tantas banguelas que quando cheguei por lá a passeata já havia acabado.
Perdi as imagens e ainda passei uma hora atrás de um lambe-lambe que havia na cidade para comprar uma foto dos trabalhadores rurais em grupo pelas ruas, empunhando faixas e bandeiras.
No dia seguinte, quando fui no ponto de táxi levar o dinheiro que o jornal me enviava para pagá-lo, ele abriu um sorriso maroto, socou a grana no bolso e me perguntou: “O jornal deu a notícia?” Eu respondi: tio, só sei mais tarde, quando o jornal chegar.
Nos anos 80, o Diário de Pernambuco era o único jornal disponível em Afogados da Ingazeira. Chegava de ônibus, por volta das 14 horas. O gazeteiro se chamava Amaro, uma figura superengraçada, de memória privilegiada. Tinha na cabeça todas as placas dos carros de Afogados. Além de distribuir o jornal, passava jogo do bicho e ainda fazia rifa. Era conhecido como Amaro Pé de Pato, porque nasceu com os pés achatados.
Quando o DP trazia uma matéria minha, eu orientava ele a sair pelas ruas gritando a manchete para vender mais jornais. Já meu tio Paulo nem sabia ler direito nem tinha discernimento para entender o jogo da política nos protestos contra a seca.
Mas era uma figura fantástica! Baixinho, bigode ralinho, dirigia empunhando um cigarrinho de palha na boca, que só vivia apagando. Adorava apostar no jogo do bicho, apelando para a sorte lhe jogar mais uns trocadinhos no bolso. E nas horas vagas, traçava uma cartinha no baralho.
Sua grande vocação, no entanto, estava longe da Rural azul e das banguelas: foi um exímio alfaiate. Os cortes dos seus ternos em linho branco e cinza eram encomendos pelos nobres, que enchiam os salões dançando valsas em festas de fim de ano no velho coreto de Afogados da Ingazeira.
Embora minha especialidade no jornalismo seja na seara política, gosto de escrever crônicas, em temáticas que me levam ao passado, porque não existe lembrança pura do passado. O passado existe para sempre ser reconstruído.
Entendo que enquanto existir recordações sentimentais, o tempo passado não morrerá jamais. O hoje será sempre uma lembrança do amanhã.
Leia menos