A crônica de hoje tem o toque das reminiscências, lembranças marcantes de momentos do passado. Tem sabor de nostalgia e o tempero da saudade. Lembranças evocadas por cheiros, músicas e ambientes de infância que ainda povoam a minha mente. Escrevo sorrindo com as minhas traquinagens infantis.
Tem uma música de Oswaldo Montenegro, que o conheci recentemente num café da manhã em Afogados da Ingazeira sem, no entanto, convencê-lo a gravar um Sextou, que diz assim: “Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que eu me lembre ter dado na infância”.
Leia maisInfância a gente lembra ao passar pela rua em que fomos criados, a qual nos resta apenas uma grande lembrança. Infância boa bate saudade de vez em quando, saudade dos velhos amigos que hoje não tenho aqui comigo. Os anos podem passar, a vida pode mudar, mas os melhores momentos o tempo jamais irá nos tirar, independente do que aconteça.
Infância no sertão do meu tempo era empinar papagaio, brincar de esconde-esconde na calçada da igreja, jogar pião e bola de gude, ouvir histórias de trancoso que nos roubavam o sono. Comer tareco e mariola na bodega de Dona Helena, na praça Arruda Câmara. Sentir o sabor de xerém com carne no jantar ou cuscuz com leite no café da manhã.
Mamãe Margarida nos servia ainda jerimum com leite. E ai de quem não comesse! Nos fins de semana, piquenique no sítio de papai, debaixo dos mangueirais oponentes e sombrios. Católica fervorosa, minha doce e amada mãe me botava no seu colo nas missas da Catedral. Enquanto ela rezava por nós, eu dormia o sono juvenil em seu colo quente e aconchegante.
Lembrei-me disso ontem ao revisitar os bancos de madeira da Catedral durante a missa de sétimo dia em sufrágio da alma de minha cunhada Socorro Martins, segurando fortemente a mão da minha Nayla ante o calor da emoção do meu agora irmão viúvo Augusto Martins e dos seus filhos Olga e Luiz Augusto.
Fiquei a matutar. Pensei comigo próprio no silêncio sepulcral da catedral: infância é um jardim florido, o jardim da infância. No meu jardim, fiz amizades que só são lembradas ao olhar fotos. Até hoje levo algumas dentro dessa máquina pulsante que chamam de coração.
Memórias de infância não envelhecem. Voltam em fotos antigas, em frases que nos tocam, em pequenos gestos do presente que resgatam um tempo leve, cheio de descobertas e afeto. Relembrar esses momentos é uma forma de preservar aquilo que fomos e valorizar o que vivemos ao lado de quem amamos.
Lembranças boas não envelhecem, só se tornam mais doces. Tem lembrança que volta com cheiro, cor e som. Outras voltam com um gostinho de infância que nem o tempo consegue apagar. O tempo leva os dias, mas não apaga os instantes felizes. Fernando Pessoa, um dos maiores da nossa fauna poética, disse que a infância é o eterno retorno à casa.
Lembrar da infância, na verdade, é reviver a inocência, a felicidade pura. Quem guarda recordações felizes da infância estará salvo para sempre. A infância é o período mais curto da vida, mas o que deixa as lembranças mais longas. É o terreno que a gente pisa a vida toda. É o reino onde a morte não tem lugar.
Toda infância feliz deixa marcas invisíveis que o coração nunca esquece. A vida muda, mas há risadas da infância que continuam ecoando em nós. A saudade da infância é o tipo mais puro de saudade. A escritora Cecília Meireles dizia que na infância tudo é mistério, um reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar.
No poema Infância, Carlos Drummond de Andrade lembrou que seu pai montava a cavalo, ia para o campo. Já sua mãe ficava sentada cosendo, enquanto o irmão pequeno dormia. “Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu — chamava para o café. Café preto que nem a preta velha, café gostoso, café bom”, diz um dos trechos da sua poesia.
Relembrar a infância é folhear um álbum invisível onde cada lembrança tem som, cor e coração. Às vezes, tudo o que a gente precisa é de um instante de silêncio para voltar à infância sem sair do lugar. O passar do tempo nos ensina a valorizar o passado, este retrovisor que nos guia para o futuro.
Na minha dura rotina hoje, preciso reviver, mesmo que só na lembrança, o que me marcou profundamente, como voltar à minha antiga casa, rever a minha infância e todos os momentos felizes que lá passei. Quem viveu a infância raiz sabe: não precisava de muito para ser feliz, só de rua, tempo livre e imaginação.
Depois de tudo que vivi e vivo na maturidade não tenho a menor dúvida: nossos sonhos são arquitetados na infância e conquistados no decorrer da vida. Toda vez que recordo da minha infância, abraço a criança que vive dentro de mim. São laços que jamais irão se romper, porque estão guardados na alma, impregnados no coração pulsante. A rua da minha infância era o mundo e eu o dono dele. Sou feliz porque fui uma criança feliz.
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