Se ainda estivesse entre nós, meu pai Gastão Cerquinha teria completado 103 anos, sexta-feira passada. Fez a última viagem há três anos. Viveu bem: cem anos e sete meses. Saudável, magro, morreu de falência múltipla dos órgãos – seu corpo foi vencido pelo tempo. Em 1922, ano da sua nascença, no sítio Borges, em Afogados da Ingazeira (hoje um bairro), tanto no Brasil como no mundo ocorreram eventos significativos.
No Brasil, a Semana de Arte Moderna em São Paulo marcou o início do movimento modernista, desafiando as tradições artísticas e culturais. O País também celebrou o centenário da Independência e experimentou a primeira transmissão de rádio. No mundo, a formação da União Soviética foi um marco político, e a Primeira Guerra Mundial, que havia terminado recentemente, continuava a influenciar o cenário mundial.
A primeira transmissão de rádio se deu com o discurso do então presidente da República, Epitácio Pessoa. Foi uma revolução nas comunicações. Foi o último ano do mandato de Pessoa, marcado por revoltas contra as oligarquias mineira e paulista que eram dominantes na primeira república (1889-1930). Também no mesmo ano, ocorreu a Revolta Tenentista, com os 18 do Forte de Copacabana e a formação da Coluna Prestes.
Leia maisSó mais tarde, quando começou a despertar para o mundo, na condição de leitor voraz – revistas e jornais chegavam em Afogados da Ingazeira com um atraso de 30 dias, a cidade não tinha energia elétrica e era isolada das civilizações – papai passou a entender a geografia política e econômica, a compreender também os desafios pela frente, para se firmar como gente na vida.
Seu tino comercial se deu a partir do momento em que, ainda adolescente, passou a vender banana na feira da cidade. Mais tarde, entrou no ramo de padaria e trocou, pouco tempo depois, por uma loja de miudezas em geral. Era inquieto por natureza e extremamente vocacionado para o comércio, a política e a literatura.
Paralelo ao comércio, ingressou na vida pública como servidor federal dos Correios e Telégrafos. Era a renda extra que conquistou já por influência política, através do ex-deputado federal Lamartine Távora, a pedido do seu compadre e chefe político Josesito Padilha, para sustentar nove filhos com Margarida, o grande amor da sua vida.
Na política, papai só aprendeu o lado bom – servir as pessoas, sem se servir dos cargos. Foi vice-prefeito e teve quatro mandatos de vereador. Morreu sem inimigos, algo impressionante. Só quando li Aristóteles, entendi: o objeto principal da política é criar a amizade entre membros da cidade. Foi isso que ele perseguiu a vida inteira.
E como era hábil! Esta semana, ouvi do meu conterrâneo Otaciano Veras, servidor público aposentado, de quem papai era muito amigo, uma história de arrepiar, exemplo do seu lado extremamente humano e refinado, pautado pelo cuidado de não ferir e contrariar as pessoas.
Entre tantas tarefas nos Correios, papai recebia e passava telegramas. Antigamente, um telegrama era transmitido pelos Correios através do telégrafo elétrico, onde a mensagem era codificada em pontos e traços, e transmitida através de fios. No destino, um telegrafista traduzia os sinais de volta para a mensagem original e a entregava ao destinatário.
A mensagem era escrita em um formulário específico, que geralmente limitava o número de palavras para economizar no custo da transmissão. O formulário era entregue nos Correios, onde um telegrafista codificava a mensagem em sinais elétricos (pontos e traços) e a enviava através da rede telegráfica.
No destino, outro telegrafista recebia os sinais, decodificava a mensagem e a imprimia em uma tira de papel, que era então colada em um formulário oficial, dobrada e entregue ao destinatário. A entrega do telegrama era feita por um carteiro ou mensageiro dos Correios, responsável por levar a mensagem ao endereço do destinatário, que, por sua vez, pagava o serviço na entrega.
Papai não era carteiro, mas como passava por ele todos os telegramas remetidos para Afogados da Ingazeira, dependendo do conteúdo da mensagem ele mesmo entregava, principalmente em se tratando de amigos, que não desejava que viessem a ser impactados com uma notícia ruim, entregue friamente por um carteiro.
Otaciano era um grande amigo de papai, tão próximo que até as dores do coração as confessava. Meu velho acompanhou de perto uma paixão avassaladora que o amigo teve com uma bela mulher que morava no Recife, a 386 km de Afogados da Ingazeira. Certo dia, papai recebeu um telegrama devastador da namorada de Otaciano, acabando o namoro.
Ele próprio foi entregar, mas, segundo Otaciano, com uma forma tão cuidadosa para não deixar o amigo desnorteado, própria da natureza dele de não chocar os amigos. “Amigo, não fique triste nem chocado, mas este telegrama não traz uma boa notícia. Meu ombro amigo está aqui para amenizar sua dor”.
“A dor foi grande, mas pela forma como Gastão me entregou, sofri menos, porque ele soube me prevenir”, relatou Otaciano, quando contou o episódio para mim. Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes.
Assim era meu pai, de quem me orgulho muito!
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