Por Raul Silva
Da Rádio Itapuama FM
A comunicação político-institucional no Brasil atravessa uma crise estrutural, e os seus sintomas mais evidentes nem sempre aparecem nos palácios dos grandes centros, mas se revelam com nitidez nos rincões do interior. No sertão, no agreste, nas cidades pequenas de Pernambuco e em tantas outras do país, o que deveria ser canal de informação pública e de serviço à cidadania foi convertido em instrumento de vaidade política. Secretarias de comunicação se tornaram departamentos de propaganda pessoal dos prefeitos. A publicidade institucional, financiada com dinheiro do contribuinte, passou a ser tratada como investimento eleitoral disfarçado.
A promessa constitucional de uma comunicação pública a serviço da transparência, do controle social e da prestação de contas virou letra morta diante da realidade: assessorias transformadas em palanques permanentes, comunicadores sem formação técnica, textos automatizados e vídeos que se preocupam mais com o ângulo do prefeito do que com os dados sobre saúde, educação, obras e serviços. É o triunfo da estética sobre a ética. A imagem substituindo a informação. O marketing ocupando o lugar da política pública.
Leia maisA prática de nomear aliados políticos, e não profissionais capacitados, para cargos técnicos, especialmente nas áreas de comunicação, é recorrente. Em prefeituras de todos os tamanhos, secretários são escolhidos por afinidade, lealdade ou troca de favores, não por experiência, conhecimento ou compromisso com o interesse público. E isso tem consequências: estruturas desorganizadas, decisões mal orientadas, produção de conteúdo improvisada e ausência de estratégia de comunicação verdadeira, voltada à sociedade. O resultado é um ecossistema institucional fragilizado, onde a comunicação serve a um projeto de poder, e não ao povo.
Nos sites, redes sociais e rádios institucionais, o que se vê com frequência são releases mal escritos, textos gerados por inteligência artificial sem qualquer revisão humana e vídeos onde o prefeito ou a prefeita são os protagonistas de todas as ações. Em vez de dados claros sobre vacinação, calendário escolar ou acesso a programas sociais, o que predomina são peças publicitárias com trilhas épicas, close no gestor e frases de efeito. O tom institucional desaparece; sobra o tom de campanha.
Um exemplo simbólico do uso problemático da inteligência artificial ocorreu em Ulianópolis (PA), onde a prefeitura divulgou um vídeo comemorativo das festas juninas inteiramente gerado por IA. A peça apresentava imagens hiper-realistas de pessoas que não existem, vestidos típicos falsos e cenários que nada têm a ver com a realidade da cidade. Não havia qualquer aviso de que o conteúdo era artificial. Moradores criticaram duramente a peça e denunciaram o distanciamento entre o que era mostrado e a vivência cultural local. Mais do que uma escolha estética ruim, o caso revelou uma postura perigosa: a substituição da verdade pelo simulacro.
E o problema não está apenas no uso da IA, mas no modo como ela é usada, sem transparência, sem edição, sem revisão. Em diversos municípios, comunicados oficiais são redigidos por ferramentas automatizadas, como o ChatGPT, e publicados diretamente, com erros de ortografia, repetições ou construções que denunciam sua artificialidade.
Já houve casos em que prefeitos e secretários de comunicação postaram mensagens ou enviaram releases a imprensa com instruções do próprio sistema de IA visíveis no corpo do texto ou ainda com as marcas de sintaxe típicas de IA descaradamente visíveis. Isso fere a credibilidade das instituições públicas, alimenta a desinformação e enfraquece o vínculo de confiança entre governo e população.
Paralelamente, os orçamentos públicos com publicidade não param de crescer. Em Pernambuco, municípios destinam cifras milionárias para agências de publicidade e contratos com veículos locais, enquanto enfrentam déficits graves em áreas essenciais. Só no Recife, entre 2021 e 2024, mais de R$ 600 milhões foram consumidos com eventos, campanhas e ações de comunicação.
Em contrapartida, pouco mais de R$ 230 milhões foram aplicados em obras de drenagem urbana, numa cidade historicamente afetada por enchentes. Isso escancara uma inversão de prioridades: investir mais em convencer do que em resolver. Em parecer do que em fazer. Em slogan do que em infraestrutura.
Nos pequenos municípios, a situação beira o absurdo. Há cidades com menos de 25 mil habitantes que gastam mais com publicidade do que com manutenção de escolas. Enquanto isso, postos de saúde operam com escassez de médicos, ambulâncias estão quebradas e creches funcionam em espaços improvisados. Mas nas redes sociais da prefeitura, tudo é colorido, feliz e promissor. Vive-se uma realidade paralela construída a partir da propaganda oficial.
E quem deveria cumprir o papel de denunciar esses abusos? A imprensa. Mas em muitas cidades, principalmente no interior, a imprensa local é refém da verba pública. Rádios comunitárias, blogs e portais de notícias sobrevivem financeiramente de contratos com as prefeituras.
Quando esses contratos são usados como forma de controle, nasce o jornalismo chapa-branca — aquele que se limita a reproduzir releases, evitar críticas e elogiar o gestor, sob pena de retaliação financeira ou política.
Quer um exemplo? Em Salvador, o jornal A Tarde teve a verba de publicidade suspensa pela prefeitura após publicar reportagens críticas. A Justiça entendeu que a medida configurava censura indireta e mandou restabelecer os repasses. Em Pernambuco, casos semelhantes são relatados com frequência, embora com menor visibilidade. Blogs que denunciam irregularidades veem seus contratos rescindidos. Comunicadores são processados por danos morais. O espaço público de debate se estreita, e a população perde sua principal ferramenta de fiscalização.
A comunicação pública virou ferramenta de blindagem política. Prefeitos utilizam as verbas de publicidade para construir narrativas positivas, sustentar uma imagem de eficiência e neutralizar críticas. Quando surgem denúncias, operações policiais ou auditorias, a resposta vem em forma de campanha: um vídeo novo, uma vinheta no rádio, um outdoor com frases de impacto. É a cortina de fumaça digital. O fato negativo desaparece atrás da produção em massa de conteúdo positivo. E o cidadão, mal informado, não tem como exercer controle social efetivo.
A consequência dessa lógica é profunda. A má comunicação, ou a comunicação pervertida, compromete o acesso a direitos. Quando a prefeitura não informa corretamente sobre matrículas, campanhas de vacinação, prazos para inscrição em programas ou mudanças no atendimento, o resultado é desorganização, frustração e exclusão. Comunicar mal é governar mal. E quando se comunica apenas para manter o poder, o interesse público é sacrificado.
Além disso, a falta de profissionalismo e a captura da imprensa contribuem para a banalização do serviço público. A população passa a enxergar a prefeitura como uma entidade que “dá presente”, como se obras e benefícios fossem favores pessoais do gestor, e não obrigações institucionais. Isso alimenta o clientelismo, despolitiza o debate e consolida o governante como figura salvadora, uma construção artificial que desmorona facilmente diante de crises reais.
O caminho para reverter esse quadro passa por três frentes fundamentais: profissionalização da comunicação institucional, democratização do uso da verba publicitária e valorização da imprensa local. As secretarias de comunicação precisam ser ocupadas por técnicos qualificados, com formação na área e compromisso ético. O uso da inteligência artificial deve ser regulado por protocolos que assegurem revisão humana e transparência. Os contratos com veículos de imprensa precisam seguir critérios objetivos, como audiência, alcance e relevância, e não afinidade política. E o jornalismo independente, mesmo que crítico, deve ser visto como aliado da democracia, e não como inimigo a ser combatido.
A comunicação pública não pode ser tratada como luxo nem como ferramenta eleitoral. Ela é essencial para garantir a transparência, fortalecer o controle social e ampliar o acesso à cidadania. Um governo que se comunica com clareza, ética e respeito pela inteligência da população é um governo mais eficiente, mais justo e mais democrático. Já aquele que esconde sua ineficiência por trás de slogans e efeitos visuais apenas adia o inevitável: o confronto com a realidade.
Enquanto não houver uma transformação profunda nesse modelo, seguiremos assistindo a gestões que gastam milhões com vídeos e redes sociais enquanto as filas nos hospitais aumentam, os alagamentos voltam a cada inverno e as promessas nunca se realizam. A crise da comunicação pública é mais do que um problema de linguagem, é um problema de poder, de responsabilidade e de projeto de sociedade. Enfrentá-la não é apenas uma questão técnica: é um dever político e ético com o presente e com o futuro do país.
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