Por Gustavo Krause*
No dia 04 de fevereiro de 1943, os clarins de Momo anunciaram a chegada de uma criança. Com o vagido, nasceram sete notas, o alfabeto musical, gêmeos siameses, saudáveis e vivos para sempre na obra artístico musical de José Michiles, nome de batismo, mas que para mim é Dó-Ré-Michiles.
Começou compor aos 12 anos. Michiles tem mais de 150 músicas inscritas na União Brasileira de Compositores. Seu grande parceiro, Alceu Valença, o define como um “compositor inacreditável”.
Leia maisNossos caminhos se cruzaram na vibrante paixão clubística. Sete letras mágicas. Do Natal de 1974, em celebração ao memorável campeonato conquistado pelo Náutico, até a malvada pandemia, um grupo de amigos almoçou junto, por mais de quarenta anos, tendo como anfitrião um grande homem: o admirável Sebastião Orlando.
Michiles chegava com sorriso estampado no rosto; saudava a todos com alegria contagiante e, logo, fazia da mesa a percussão para entoar novas composições que entravam na cabeça, tomavam o corpo e explodiam como sucesso na boca do povo.
Humilde demais da conta. Dele exala cheiro do berço manjedoura do lar muito pobre em que nasceu.
Tão generoso que, ao ouvir uns versinhos irreverentes de minha autoria, com o título “adoro celulite”, disse “dá uma marchinha pra valer, aguarde”. Musicou e ajustou a letra. Resultado: a marchinha foi campeã do Concurso Nacional (2015), promovido pela Fundição Progresso. Eufórico, disse ao telefone, “somos campeões, parceiro”. Parceiro coisa nenhuma, ele era o que sempre foi: um campeão de dimensão nacional
É a este ícone da música brasileira a quem presto singela homenagem ao completar 80 anos, transcrevendo (quase na íntegra) o Prelúdio que escrevi, em fevereiro de 2000 no belo livro de sua autoria.
Prelúdio
Cercas e Quintais: uma eterna Manhã de Sol
Cercas e Quintais é uma emocionante viagem. Michiles me pegou pelo braço e me fez caminhar no vasto território das recordações para rever paisagens adormecidas.
Revi, por exemplo, a paisagem suburbana do Recife de quem sou filho legítimo e de quem somos – companheiros de geração – órfãos inconformados.
Eram tempos de fraterna convivência e afetos compartilhados […]Cercas e Quintais são lembranças postas em sequência, tecidas com ritmo, estilo e sensibilidade. Aguça o tempo da memória que é o tempo que toma conta da vida de quem envelhece.
É o meu caso. Saudoso, não chego a ser um passadista impertinente; nostálgico, chego a ser um melancólico recorrente.
Nada, no entanto, que me ponha contra as novidades do tempo moderno.
Nada, por exemplo, contra as brincadeiras de alta tecnologia que são instigantes e solitárias.
Tudo a favor do pião, da bola-de-gude, da bola-de-meia, do papagaio (pipa), do bodoque, da ratoeira para pegar guaiamum, ou seja, tudo a favor de uma tradição que é lúdica e solidária.
Nada contra velocidade do jato, a fibra ótica, a invasão televisiva, o computador e a hipnose dos celulares.
Tudo a favor dos seus antepassados: a máquina-de-costura, o vapor, o bonde, o baixo-falante, o telégrafo, o rádio.
Nada contra as grandes e sedutoras redes de varejo.
Tudo a favor da caderneta da venda de dona Maria que assegurava o pão de cada dia nas agruras do desemprego.
Nada contra a magnífica indústria do entretenimento e as assépticas cadeias de fast food.
Tudo a favor do esplendor romântico da Festa da Mocidade; da magia dos circos; da serpentina partida dos carnavais charmosos (e cheirosos); do sabor insuperável e o inconfundível aroma do cachorro-quente nas portas dos clubes.
Tudo a favor do maltado da Galeria, uma inesquecível sobremesa dos banquetes sabáticos no mercado dos amores[…] Michiles pintou um belo quadro de recordações com as tintas da poesia dando harmonia a uma prosa jeitosa.
Apresentou-me a mais um dos muitos “Zezinhos” que conheci na minha infância; filhos do amor; heróis da resistência e, exemplos de luta: todos venceram na vida.
Em Cercas e Quintais, Michiles, o Zezinho, conta a história dos seus heróis – seu Romeu e dona Maria José, 10 irmãos – com singelo enredo de um tempo romântico e a trilha sonora da poesia musicada que faz de sua vida, uma eterna Manhã de Sol”.
*Ex-governador de Pernambuco
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