Por Zé Nivaldo*
Nas imediações do Carnaval de 2020, fui com os netos para o bloco infantil ‘Amantinhos de Gloria’. Praça do Arsenal, bairro do Recife antigo. Aproveitei para um reencontro com o Bar do Maltado, na Rua da Guia. Observando a foto do dirigível Graf Zepelim, que decora a casa, Vinícius, então com uns oito ou nove anos, observou a suástica pintada no dirigível e fez a observação: “Zé, o Zepelim era nazista”. Detalhe que me passara despercebido até então.
Em 1928, antes de Hitler chegar ao poder, o LZ 127 Graf Zepelin, com 240 m de comprimento e 30 m de diâmetro, inaugurou o transporte de longa distância para passageiros. Viajou da Alemanha para Tóquio, Sibéria, Los Angeles, Brasil, Egito e, após uma volta ao mundo, ficou conhecido como o dirigível “bem-aventurado”. Após 590 viagens, foi desativado devido ao acidente com seu irmão gêmeo, o LZ 129 Hindenburg. Este pegou fogo durante uma aterrissagem nos Estados Unidos, por volta de 1937, deixando um trágico saldo de 35 mortos.
Leia maisO Zepelim passou pelo Recife 252 vezes. O suficiente para se implantar no imaginário coletivo. Desde a chegada das caravelas, no século XVI, não se via por essas bandas nada tão impressionante. A super engenhoca aportava na Torre do Jiquiá, que ainda hoje enferruja ao abandono.
Neste ano da graça de 2024, está instalada a polêmica. Empreendedores propõe-se a construir um bar em forma de Zepelim no sagrado território do Recife Antigo. Sem entrar em detalhes, sou a favor. Como historiador de formação, defendo a preservação do patrimônio histórico. E como historiador, escritor, professor, comentarista, palestrante, comunicador, estrategista político desportista, cidadão do Recife apaixonado pela cidade, sou favorável ao empreendimento. Entendo as cidades como seres vivos e dinâmicos. Não podem ter a memória destruída. Mas não tem sentido ficarem paradas esperando o tempo passar.
Exemplos ao acaso. Certa época, a Times Square “agrediu” a paisagem do Nova York. A Torre Eiffel, foi um bofete na cara de Paris. E o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro? Mudou para sempre uma paisagem natural preservada. Minha gente, um dia nem cidades existiam. Lisboa foi reconstruída um dia desses depois de um incêndio devastador. Paris é outra depois de Napoleão. Londres outrora nem tinha Big Beng. E muito menos a tal Roda Gigante. Hoje, ambas compõem a paisagem, passado e presente. E a pirâmide do Louvre? Com uma visão preservacionista ortodoxa jamais teria sido feita. Aliás, nem a Praça de São Pedro, o Coliseu, a Capela Sixtina, o próprio museu do Louvre. Ou a muralha da China, as pirâmides, o Taj Mahal, e por aí vai. Tudo o que existe na face da terra um dia interveio sobre o que existia antes. Agora mesmo, nesta madrugada de sexta-feira, abro a cortina do meu quarto de hotel para contemplar as luzes fascinantes do plano piloto de Brasília. 65 meros anos atrás, nada disso existia. Hoje, é patrimônio da humanidade, cidade única, flor plantada no cerrado.
500 anos atrás não tinha nem uma casa sequer. No máximo, ocas. Foi a primeira metrópole das Américas, no tempo de Nassau. A guerra pela expulsão dos holandeses destruiu tudo, não ficou taipa sobre taipa. Ao longo dos séculos o bairro do Recife Antigo foi ganhando e perdendo edificações. As igrejas. A Torre Malakoff. O Chantecler. A Rua do Bom Jesus teve vários nomes e perfis. A configuração atual, e linda, do bairro é de 100 anos atrás. A praça do marco zero não tem sequer 30 anos. O mundo começa no Recife, mas muda a cada dia.
Sem ter aprofundado análises e avaliações, achei a ideia arretada. Olhando uma foto antiga do Zepelim original pairando sobre o bairro, nada me parece mais histórico que o projeto. Avançar não é manter paredes intocadas. É recriar o mundo. Unindo passado e futuro, melhor ainda. Uma cidade ” metade toubada do mar, metade da imaginação”, no verso imortal de Carlos Pena Filho, não pode, não deve ter medo da criatividade. Vamos continuar construindo nossa cidade, de sonhos e ousadias.
*Publicitário, escritor e diretor do jornal ‘O Poder’.
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