Confesso que não era do meu conhecimento a benta bagagem que ela conduzia, e fê-la se demorar em uma quimérica argumentação com o fiscal alfandegário do aeroporto de Lisboa, tentando liberar a botelhinha contendo aquela água quase santificada, pelo menos para ela, que, na intensidade da sua fé e ardor devocional a Nossa Senhora de Fátima, acreditava que a mim faria pedi-la em casamento aos pés da Tour Eiffel, como procedem os casais apaixonados.
Ufa! Foi por pouco. Não que a minha alegre e às vezes moleca e sorridente Alexsandra não merecesse. Não é isso. Escapei “fedendo”, entretanto, em bom “cearensês”. Não foi dessa vez que o milagre se operou.
Como ensina a sabedoria popular, o marido é sempre o último a saber, razão pela qual declaro a quem interessar possa que, até então, desconhecia o porquê da sua demora, e o não comparecimento à sala de embarque, e, menos ainda, que seria por pretexto de fé. Aliás, fé em demasia!
Em seu favor, registo o fato de que, na condição de boa advogada e detentora de grande capacidade argumentativa, mesmo não tendo sido suficiente para convencer o fiscal alfandegário, para que liberasse a bendita água, fez valer o juridiquês e dele exigiu que fossem seguidos todos os trâmites canônicos cabíveis e aplicados à ocorrência sob narração, porquanto não se dava o caso de uma bagagem qualquer, e sim de uma garrafa d’agua benta, jorrada e envasada das mãos de Nossa Senhora, na fonte do Santuário de Fátima. Por expressa razão, requereu que o recurso impetrado fosse enviado à última instância em Roma, com um pedido de tutela episcopal ao Santo Ofício, com vistas a liberação pontifícia imediata.
Enquanto era travado um demorado debate sobre essa peça do Direito Romano, que eu nem sabia estivesse a ocorrer, então no âmbito do Juris Canonici, pela mudança de jurisdição apelativa, mesmo sem a sua doce presença, assenti em ser levado para o embarque, na esperança de minha amada ainda chegar a tempo, antes do fechamento de portas da aeronave e posterior decolagem. Para o meu quase desespero, não foi o que ocorreu!
Sim, o contexto de estresse deixou-me irritado, angustiado, os nervos à flor da pele, suando frio do cangote ao mucumbu, como se diz em “cearensês”-raiz, por não saber o que havia “assucedido”.
Estava preocupado e tremendo feito vara verde, imaginando o seu temor de ficar sozinha largada naquele aeroporto, e de perder a oportunidade de chegar a Orly segurando a minha mão. Este era um sonho acalentado por um tempo considerável. Além disso – é claro – houve a minha reação pelo ocorrido, motivo por que fui forçado a desembarcar, mesmo contra a vontade dos comissários responsáveis, pelo voo que nos levaria à mais bela e histórica cidade do Mundo, às primeiras horas da manhã daquela quarta-feira ensolarada em Lisboa!
Depois de todas as incertezas que envolviam o reembarque, nossos queridos amigos, ansiosos e preocupados com todo aquele contratempo, nos aguardavam para aquela que viria a ser uma noite inesquecível no restaurante Caviar Kaspia. Finalmente, no dia 16 de outubro de 2024, às 18h42, o Voo TAP 432 tocou o solo aeroportuário de Orly, localizado em Essone e Val-de-Marne, sob uma temperatura de 18 graus Celsius e ventos moderados. Foi o que acabara de informar o comandante, ao iniciar o taxiamento, para o desembarque. Assim sucedeu nossa chegança! Superado o causo, tudo foi só alegria, emoção e benquerença.
Não era minha primeira vez na Capital Frâncica. E a porta de vidro automática – que se abrira sozinha à frente da colega Rosa Freire D’aguiar, e a deixara fascinada, quase extasiada pela Modernidade que ela nunca vira ao deixar o Brasil, para morar e trabalhar ali como correspondente – já não me surpreendeu.
À extensão da primeira década deste século, havia estado duas vezes ali – como estudante, para eventos acadêmicos, no período de doutoramento, na Universidade Nova de Lisboa. Ainda assim, a emoção que irrompera naquele instante me fizera experimentar as sensações, o fascínio e as expectativas de quando se está perante o desconhecido.
Dessa vez, tudo era novo e inusitado, pois me fazia acompanhar da minha mulher, Alexsandra, fervorosa devota da Virgem de Fátima, e que, por causa de uma benta garrafa de água, me levara a transitar por situações até aquele momento jamais vivenciadas.
Com seu jeito extrovertido de adolescente sapeca, movida por aguçado romantismo juvenil, de há muito insistia para que fôssemos a Paris. E, embora alimentasse seu desejo, sempre dava um jeito de adiar o sonho acalentado.
Chegara a termo o grande dia e, então, era como se fosse a primeira vez, pois, nos referidos tempos de doutorando, para atividades acadêmicas na Sorbonne, os hotéis onde eu ficava “hospedado” eram de céu totalmente desestrelejado e desprovidos, pelo menos, de uma lua quarto minguante: sem elevador, com escadas estreitas em caracol, nem banheiro no quarto, pia no corredor, com café preto e pãozinho sem manteiga. (Diz o adágio que “o pão do pobre só cai com a margarina pra baixo”). Tudo isso ficara para trás. Naquele momento, as condições eram glamourosas.
Diferentemente das vezes anteriores, nesse outono, além da amável companhia da minha querida Alexsandra, realizando o acalentado sonho de estarmos juntos em Paris, experimentamos o privilégio da companhia de vários amigos, e, para o deleite de todos, tivemos por anfitrião o querido e elegante casal César e Denise Montenegro, os quais nos receberam em seu indescritível apartamento, localizado no 142 bis, Rue de Grenelle, 7º arrodissement – uma chiqueza, onde das janelas se descortina uma privilegiada e deslumbrante visão da Tour Eiffel, deixando Alexsandra, no modo “maria-retrato”, registrando aquele momento em centenas de fotografias, ao cair da noite quando as lâmpadas da Tour eram acesas.
O belo, amplo e histórico AP, com decoração que mescla o clássico e o moderno, ao estilo minimalista, tem 1908 como ano de edificação, e situa-se a três quadras do Seine, no roteiro mais cultural banhado pelo Rio, sendo vizinho ao museu Rodin, próximo do D’Orsay e do Louvre, a poucas quadras da Assemblée Nationale – sede da Câmara Baixa do Parlamento de França, vizinha do Senat, a Câmara Alta.
Naquele memoroso período de oito dias, em que fomos hóspedes de Cesar e Denise, quando a elegância e a simplicidade do casal se incorporaram a bom gosto, leveza e gentileza permanente, provamos da agradabilíssima companhia dos não menos queridos amigos Rafael Neto e Helena Fernandes, Carlos Maia e Cristiane Boris, Paulo “c’est le matin” Fontenele e Salete, com os quais dividimos deliciosos roteiros culturais e gastronômicos, regados aos melhores vinhos nacionais.
A propósito, no livro Paris dos Escritores Americanos – (1919-1939), no capítulo 2 – “Descobrindo Paris”, Ralph Schor assinala que os escritores ianques exploravam metodicamente a Metrópole Parisiense, como se seguissem um plano preestabelecido, mas também fazendo peregrinações improvisadas. Foi mais ou menos como fizemos no extenso roteiro gastronômico que percorremos, sugestionado pelos nossos anfitriões, devidamente coordenado e cuidado com esmero pela querida Flávia, a brasileira mais francesa que conheço, pois sabe mais acerca da Ile de France e arredores do que muitos franceses.
Vale o resgate de um dos roteiros gastronômicos, que incluiu os restaurantes Caviar Kaspia, já referenciado como o local do nosso jantar da primeira noite da conturbada chegada à Capital de França, bem como o Civetta Tratoria Italiana, Lê Basílic, Ralph’s, La Coupole, Le Voltaire, La poule au Pot, dentre outros!
Um brinde a todos com os desejos de que voltemos o quanto antes à Cidade-Luz!
Saúde, paz e fraternidade. Hô hô hô hô!
Comentários e críticas para: arnaldosantos13@live.com
*Jornalista
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