Como o paraibano Vital Farias, que Deus chamou no último dia 5, as composições de João Silva, quarto personagem focado nesta série sobre os célebres e imortais parceiros de Luiz Gonzaga, eram muito mais conhecidas do que ele próprio. Uma obra maior do que o autor? Impossível! João Silva não teve a mesma sorte de ser apadrinhado pela mídia como Zé Dantas e Humberto Teixeira, cardeais do mundo gonzaguiano.
Em número de canções gravadas pelo Rei do Baião, o plural, inquieto e boêmio sertanejo de Arcoverde bateu de longe a dupla de ouro: enquanto Zé Dantas emplacou 49 músicas e Humberto Teixeira 31, João Silva chegou a 107, entre elas “Danado de bom”, gravada em 1984, num período já escasso de sucessos de Luiz Gonzaga.
Em apenas três meses, vendeu, pasmem, 1,6 milhão de cópias. Antes, porém, Luiz Gonzaga já vinha fazendo sucesso com outra canção muito conhecida: “Pagode russo”. A música foi composta originalmente por Luiz Gonzaga e gravada por ele (em 1947 e 1965) e por Dominguinhos (em 1973), apenas em versão instrumental, sem letra.
Leia mais“Pagode russo” só estourou mesmo depois que João Silva tornou-se um dos maiores parceiros de Luiz Gonzaga (a partir dos anos 1960) e, juntos, colocaram letra na canção, que a regravou no álbum “Danado de bom”, de 1984. A letra traz um humor inteligente e faz uma brincadeira ao criar uma história para comparar um ritmo ou dança tradicional da Rússia, chamado Trepak.
Trata-se de um allegro rápido, em um compasso de 2/4, que possui como características a batida com os pés, passos de agachamento e saltos de equilíbrio ao Frevo, mais famoso ritmo pernambucano. Trepak era o ritmo russo da tradicional dança dos Cossacos, citados em “Pagode russo”: um povo nativo das estepes das regiões do sudeste europeu (principalmente da Ucrânia e do sul da Rússia), que se estabeleceram mais tarde nas regiões do interior da Rússia asiática.
Os Cossacos eram conhecidos por sua coragem, autossuficiência, força e capacidades militares (especialmente na cavalaria), mas – também – pela crueldade com que atacavam outros povos e aldeias. Só que João Silva e Luiz Gonzaga pegaram a palavra “Cossaco” e fizeram um trocadilho com a expressão em português “com o saco”. Aí é que vem a malícia e o humor de “Pagode russo”:
“Ontem eu sonhei que estava em Moscou/ Dançando pagode russo na boate Cossacou/ Parecia até um frevo, naquele cai e não cai/ Parecia até um frevo, naquele vai e não vai/ Entra cossaco, cossaco dança agora/ Na dança do cossaco, não fica cossaco fora”.
Mas se João Silva foi o recordista em gravações, entre os parceiros de Luiz Gonzaga se revelou o mais brigão. Luiz Gonzaga era temperamental, verdadeiro pavio curto. A primeira desavença ocorreu em 1961, quando Severino Januário gravou a canção “Desavença”, de autoria de Silva, com Miguel Lima, ex-letrista de Gonzagão, que sentiu-se traído por Januário, por ser parente do sanfoneiro.
A segunda contenda, mais grave, ocorreu em 1974, tudo porque Luiz Gonzaga, refratário a álcool, passou a reprimir a vida boêmia e o gosto exagerado de João Silva por água que passarinho não bebe. Ficaram quatro anos intrigados, só retomando a parceria em 1978. E a partir daí, viveram uma lua de mel que fez Gonzagão lançar no mercado grandes sucessos, como “Sanfoninha choradeira”, “Deixa a tanga voar” e, claro, “Pagode russo”.
Segundo Gustavo Alonso, do programa ABC do Forró, quem aproximou João Silva de Luiz Gonzaga foi a forrozeira Marinês, que já havia gravado vários sucessos do amigo, entre eles “A volta do baião”, “Chuvada do Norte”, “ABC do amor” e “Amigo velho tocador”. Tão logo conheceu João Silva, que era extremamente extrovertido, bem-humorado e brincalhão, mas de uma capacidade impressionante para fazer músicas, Luiz Gonzaga pediu para ele compor algo em homenagem a sua sanfona. De um fôlego só, saiu “Garota Todeschini”, a marca da primeira sanfona do Rei do Baião.
“Garota Todeschini, ouça bem essa homenagem/Que um caboclo de coragem, sanfoneiro e cantador/Que nunca cantou vantagem, nem na luta e nem no amor/Você, gauchinha, merece toda minha gratidão/Por fazer essa sanfona pra eu tocar o meu baião/Por fazer esta sanfona pra eu tocar o meu baião/Quando boto ela no peito, sinto o mundo em minha mão/Cada baixo representa um pedacinho do sertão/É dela que tiro o pão, com ela é que eu dou estudo/Garota Todeschini, prenda minha/Com essa gaita e você sou tudo/Com essa gaita e você sou tudo”.
Dois anos antes da morte de Luiz Gonzaga, João Silva compôs e o Rei gravou em 1987 um dos seus maiores sucessos: “Nem se despediu de mim”. Trata-se de uma história de amor vivido pelo autor, retratando a desatenção da sua amada que chegou, saiu e nem sequer deu atenção àquele que lhe dedicava tanto amor, durante o último encontro entre os dois.
Outro grande sucesso da parceria virou uma febre no Nordeste: “Tá danado de bom”. Virou também um festival em Arcoverde, promovido anualmente pela jornalista Amanda Oliveira, em homenagem ao filho ilustre. A letra da música descreve uma festa animada, onde todos estão se divertindo ao som de instrumentos tradicionais como a zabumba, o triângulo e a sanfona. Gonzaga, na parceria, captura a essência do forró, que é marcado pela dança, pela música e pela interação social calorosa.
João Silva morreu no Recife aos 78 anos, no dia 6 de dezembro de 2013. Seu corpo foi encontrado na casa dele por vizinhos depois de três dias sem que ninguém conseguisse contato com ele. O velório ocorreu na Câmara de Vereadores do Recife e o enterro no cemitério de Arcoverde, seu berço natal.
João Silva foi um gigante. Teve seu primeiro contato com o mundo musical aos 7 anos, quando começou a tocar pandeiro. Aos 17 anos, apresentou-se no programa “Domingueira”, no Rio de Janeiro, e acabou se tornando um dos principais parceiros de Luiz Gonzaga. A amizade começou nos anos 1960.
Duas décadas depois, João produziu “Danado de bom”, que vendeu em três meses 1,6 milhão de cópias. Em 71 anos de trajetória, compôs mais de duas mil músicas, gravadas não apenas por Luiz Gonzaga, mas por outras celebridades, como Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Dominguinhos, Marinês e até Vanderley Cardoso, dentre outros.
Antes da parceria com Gonzagão, João Silva compôs um clássico histórico no estilo dor de cotovelo, que ganhou fama e fez sucesso na voz de Ney Matogrosso: “Pra não morrer de tristeza”. “Mulher/ Deixaste tua moradia/ Pra viver de boemia/ E beber nos cabarés/ E eu/ Pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és/ E eu/ Pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és”.
O poeta José Maria Marques, biógrafo de João Silva, diz que a obra dele – personificada na figura de Luiz Gonzaga – é da mesma linhagem nobre de Humberto Teixeira e Zé Dantas. “Gonzaga, inclusive, atingiu um disco de ouro a partir de João, que conservou o legado”, contou. Lançado em 2009 pelas Edições Bagaço, o livro de Marques é intitulado “Mestre João Silva – Pra não morrer de tristeza – O maior parceiro de Luiz Gonzaga”.
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