Verdadeiros estadistas, segundo o Aurélio, não são boquirrotos, falam com concisão, precisão e sem ambiguidades, em linguagem franca, mesmo que isso signifique a dolorosa promessa de “sangue, suor e lágrimas”. Já li que a diferença entre o estadista e o político comum é a de que o primeiro planta visando às futuras gerações e o outro só pensa na próxima eleição.
Marco Maciel não era boquirroto, sempre foi franco nas suas relações e agiu na política pensando nas futuras gerações. Sendo assim, foi um estadista. Vocacionado para a arte do diálogo, talvez tenha sido um dos políticos que mais contribuíram para apaziguar o Brasil. Tancredo Neves chegou a dizer que sem Maciel, não teria vencido Paulo Maluf no Colégio Eleitoral e levado o País ao reencontro da democracia.
Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas, afirmou, certa vez, que só descobriu a razão dos governos que combateu não terem sofrido derrotas no Congresso depois que conheceu Marco Maciel. Mas se alguém se aventurar a escrever as memórias do maestro da transição, como o político pernambucano ficou conhecido, não encontrará subsídios, nem mesmo com Anna Maria, sua primeira e única mulher, com quem conviveu 54 anos e teve três filhos.
“Meu marido era um túmulo”, resume Anna. Segundo ela, Marco Antônio, como o tratava, não deixou um só papel escrito falando dos bastidores que viveu apagando incêndios na República. “Se ele tivesse uma reunião com você, era só para vocês dois. Você podia morrer de perguntar, mas ele não falava”, afirma, indo na mesma linha do professor Roberto Parreira, o eterno chefe da gabinete de Maciel.
“Ninguém ficava sabendo de nada do que ele tratava com as pessoas, desde um político importante a um cidadão comum que recebia em audiência. Uma vez, ele foi recebido pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, dissecou o Plano Real e tratou de investimentos no Brasil. Putin fez uns desabafos pessoais, mas a Fernando Henrique, Maciel, na volta ao Brasil, só relatou a parte da conversa republicana. Ninguém ficou sabendo o que se passava na vida pessoal de Putin”, disse Parreira.
Todo mundo tem segredos e revela quando se constrói uma relação de confiança com alguém que tem a capacidade de manter segredo. Esta regra básica, pelo menos na política, nunca existiu para Marco Maciel. “Tancredo não gostava de falar nada ao telefone. Vinha aqui em casa várias vezes durante o dia na época em que sua candidatura estava sendo costurada para enfrentar Maluf, mas eu nunca soube de nada das conversas, porque Marco Antônio não me falava nada. Eu só tinha noção do que eles tratavam quando lia algo nos jornais no dia seguinte”, revela Anna Maria.
“Meu primeiro emprego, no Bandepe, foi através de Marco Maciel, mas nunca soube por ninguém, em toda a minha vida, que ele tenha falado sobre essa ajuda que me deu no início da minha carreira profissional”, relata, por sua vez, Cristovam Buarque. Antes de chegar em Brasília, entrar na política, virar governador do DF, ministro da Educação e senador, Cristovam viveu no Recife.
Marco conheceu Cristovam na política estudantil, do outro lado do balcão, militando já na esquerda e trabalhando contra sua eleição de presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. “Certo dia, eu estava numa parada de ônibus na Rui Barbosa, no Recife, quando para um carro pequeno, acho que um fusca, e lá de dentro um homem magro e alto me oferece uma carona. Era ele, Marco Maciel, já como deputado estadual e eu estudante. Ele já devia saber quem eu era”, conta Cristovam, rindo, ao reproduzir um exemplo da grandeza como Maciel agia na política.
Mais tarde, já na condição de governador do DF e Maciel vice-presidente da República, Cristovam recebeu convite para almoçar no Palácio Jaburu, residência oficial da Vice-Presidência. “Foi uma conversa amena e com tempero pernambucano, mas nunca vazou, era do estilo dele”, testemunha Cristovam. No período da eleição de Tancredo, Cristovam voltou a conviver com Marco Maciel. “Não fosse ele e Sarney, Maluf tinha ganho a eleição. Tancredo não ganharia. Nessa época, eu tive muito contato com ele”, diz o ex-senador.
“Marco Maciel não negava o diálogo, dialogava com a esquerda, com a direita, o centro, com todo mundo. Tinha até relação com Dom Hélder Câmara e Oscar Niemeyer, dois conhecidos comunistas. Para mim, ele não era de esquerda nem de direita. E se fosse? Uma coisa é ser de direita, outra coisa é ser ditador. Tem direita que é muito mais liberal que esquerda. Tem direita que é mais democrática que esquerda. Ele se assumia como liberal social. Ele era muito católico, cristão. Mas foi um político que deixou aula”, acrescentou.
Aloisio Sotero, ex-secretário de Agricultura na gestão de Marco Maciel, lembra que o ex-chefe administrou muitas crises no seu Governo e na Vice-Presidência da República, ajudando a distensionar a era FHC. “O que ele mais reclamava quando surgia uma crise era que em todas elas tinha que nomear um coordenador. “O coordenador da gestão de crise acabava sendo ele próprio”, recorda.
Roberto Parreira desconfia que Marco Maciel só abria o coração, revelando segredos de Estado para o pai José do Rego Maciel. “Logo quando comecei a trabalhar com ele, percebi que o grande interlocutor dele era o pai. Todo mundo pensava que era Jorge Bornhausen ou os amigos do Recife, mas quando doutor Maciel falava: “Marco, não vai dar certo”, ele não insistia, acreditava totalmente no pai. Era um misto de respeito e amor. Era uma relação muito bonita. Ele gostava de estar com o pai”, relembra Parreira.
“É uma vida que merece ser estudada, para ele ter o reconhecimento que merece. Marco era um homem íntegro e completo. Da maneira mais precisa e enfática de se definir Marco Maciel eu diria: não via defeito nele”, revela, por sua vez, o ex-governador de Pernambuco, Roberto Magalhães, a quem Maciel escolheu para enfrentar o favorito Marcos Freire nas eleições para governador em 1982, saindo vitorioso.
Coordenador da campanha de Marco Maciel ao Planalto por via indireta no Colégio Eleitoral, o então deputado estadual por Goiás, Vilmar Rocha, lembra uma passagem pelo Mato Grosso do Sul quando o então ministro-chefe do Gabinete Civil, Leitão de Abreu, convocou Maciel para uma reunião de urgência no Palácio do Planalto, na qual se tentava chegar a um consenso entre os candidatos do PDS.
“Mandaram um jatinho para levar Marco Maciel a Brasília. Descemos em Brasília de madrugada, Marco ficou duas horas na reunião, mas não me contou nada. Conhecendo o estilo dele, também não quis ser curioso”, lembra, rindo, o próprio Rocha. Segundo ele, esse encontro foi gravado em sua mente porque se deu no dia 14 de fevereiro, data do seu aniversário. “Lembro até que ele disse que ia no meu aniversário no ano seguinte”, contou.
E detalhou um fato curioso, do perfil da personalidade de Maciel: “Dias antes do meu aniversário em 1985, um ano depois, ele me ligou. Perguntou se eu estava em Goiânia e foi jantar comigo lá do dia do meu aniversário. Ele já era ministro da educação. Eu preparei um jantar na minha casa. E nos meus 34 anos, eu um modesto deputado estadual, ele jantou comigo e voltou, cumprindo a promessa no ano anterior. A promessa era dívida para ele. Ele era um homem grato. Eu não precisava, mas ele foi atencioso e carinhoso”.
Anna Maria lamenta que o marido não tenha deixado escritos da sua participação nos grandes momentos da vida nacional. “Sobre a trajetória dele, não nos deixou nada. Eu tenho cartas que ele recebia, tenho títulos, essas coisas. Mas, por exemplo, coisas de reuniões, jamais. Ele fazia muita reunião em casa, mas a gente não aparecia. A gente ia lá para dentro e as coisas pegando fogo em outra sala. Com Tancredo, por exemplo, tinha uma coisa de não falar ao telefone. Ele vinha lá em casa, eu mandava servir um café, e saía. Então, a gente não sabia do que se tratava”, revelou.
Para muitos dos que conviveram com Maciel Maciel, parece ser um dos seres humanos que vêm à terra a cada 100 anos. “Ele é quase uma perfeição do gênero humano”, diz o ex-ministro Gustavo Krause. “Ele nos deixou ensinamentos até para vida privada. Eu recorro muito ao que ele ensinava quando dizia que quem tem prazo, não tem pressa. E quando dizia que não respondia sobre hipóteses. Isso eu uso diariamente na minha vida de executivo. Não se pode falar em algo que não se sabe se vai acontecer”, revela Sotero
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Quem é Anna Maria, o único e verdadeiro amor de Marco Maciel, que se transformou na grande cuidadora dele no enfrentamento ao Alzheimer?
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