A previsão é que, com a prorrogação dos acordos, os investimentos superem R$ 180 bilhões.
Tendo como pano de fundo episódios recentes de apagões em cidades brasileiras, os contratos começam a vencer no próximo ano e precisam ser renovados ou desfeitos.
A oportunidade provoca disputa pelo papel de interlocutor com as empresas. De um lado, está o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia), que tenta convencer o governo a se manter como único interlocutor das empresas, mas enfrenta pressão política para ceder ao Congresso;
Do outro, está o presidente da Câmara, para quem o tema deve ser tratado pelo Congresso sem a interferência do Executivo. Isso significa obrigar as distribuidoras a conversar com 513 deputados e 81 senadores.
Os aliados
Filiado ao PSD, Silveira tem a seu lado Gilberto Kassab, presidente nacional da legenda; o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); e seu chefe, o presidente Lula.
Lira, por sua vez, tem o apoio de quase 400 deputados, o que lhe permite paralisar o governo.
Dado o tamanho dos contendores, o TCU (Tribunal de Contas da União) se retirou de fininho. A Corte de Contas decidiu que só vai se manifestar sobre a renovação dos contratos depois que as regras forem definidas. O ministro esperava ter o tribunal ao seu lado.Na semana passada, Lira mostrou sua disposição para a briga e surpreendeu o governo.
Em poucos minutos, ele conseguiu aprovar o regime de urgência para a tramitação do projeto. A expectativa é que o texto seja aprovado pelo plenário da Câmara nos próximos dias.
Governo vê erro de articulação
Quem acompanhou a cena conta que o ministro Rui Costa (Casa Civil) e Miriam Belchior (número dois da pasta) ao saber da notícia engoliram seco, levaram a mão à cabeça e consideraram um erro da articulação política ter deixado Lira golear. O cálculo é que tentar reverter a situação seria comprar uma briga com quase toda a Câmara.
O placar da votação mostrou o peso do presidente da Câmara: 339 a 82. A urgência significa passar o projeto na frente de todos os outros e pular a discussão nas comissões temáticas.
Xeque-mate de Lira
A reportagem apurou que Lira avisou ao governo que, se o Executivo soltar um decreto com as novas regras para os contratos, a Câmara vai aprovar outro, anulando seus efeitos. Isso significaria impor uma derrota ao presidente Lula e estabelecer uma crise política que, assim como uma CPI, ninguém sabe como termina.
Ao UOL, o ministro Alexandre Silveira disse que “todo projeto aprovado na Câmara precisa passar pelo Senado” e que os deputados já tentaram sustar uma proposta do governo, sem sucesso.
“O Congresso tem direito de fazer o que quiser, mas tem que aprovar. Passando na Câmara, quero ver aprovar no Senado”, disse o ministro de Minas e Energia.
Sobre o que motiva os deputados a apresentar o projeto, o ministro afirmou: “Precisa perguntar para o Bacelar”. O deputado federal João Carlos Bacelar (PL-BA) é o autor do projeto de lei. Silveira ainda sugeriu que a Câmara aguarde para conhecer o decreto e só depois criticar.
Oficialmente, o discurso na Câmara é de que as empresas têm prestado um péssimo serviço, deixando milhões de consumidores às escuras, causando inúmeros prejuízos.
As razões para o projeto passam, contudo, longe da preocupação com os 55 milhões de consumidores que pagam conta de luz para 20 distribuidoras. O que está em jogo, segundo uma dezena de interlocutores ouvidos pela reportagem, é com quem as distribuidoras precisarão negociar os termos dos seus contratos.
“Não tem nenhum parlamentar curvado às empresas. É tudo multinacional, tudo cheio de compliance, tudo cheio de regra rígida para financiamento de campanha”, afirmou Bacelar. E emendou um recado ao ministro: “Acho que ele precisa dialogar mais com o Congresso”.
Governo Lula herdou ‘abacaxi’ da gestão Bolsonaro
O assunto entrou no radar da Câmara no ano passado. Quando assumiu a pasta a convite de Lula, o ministro Alexandre Silveira herdou um abacaxi do governo Bolsonaro (PL).
Uma crise hídrica levou o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, a insistir com um leilão emergencial, mesmo diante de alertas do TCU de que tentativas semelhantes nunca deram certo.
O almirante bateu o pé e assinou 22 contratos no valor de R$ 40 bilhões. As regras eram tão difíceis de serem cumpridas, segundo quem entende do tema, que apenas seis empresas participaram do leilão —BTG, Âmbar (J&F Investimentos), KPS, Tradener, Rovema e Fênix. Da lista, apenas a KPS é estrangeira, com sede na Turquia, país governado por Recep Erdogan, ditador e amigo de Bolsonaro.
Pouco tempo depois da assinatura dos contratos, as condições climáticas mudaram, e os contratos se tornaram desnecessários. Como advertiu o TCU, nenhuma das empresas entregou o combinado no prazo, e todas foram multadas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) em valores de até R$ 1,2 bilhão.
Quando Lula assumiu, em janeiro de 2023, o governo poderia ter rescindido os contratos e punido as geradoras por descumprimento das regras, mas a opção foi renegociar.
As tratativas foram feitas pelo TCU, que havia instalado uma câmara de conciliação, e pelo ministro Silveira. As empresas, mesmo as inadimplentes, tiveram redução de 50% nas multas e —o que mais as interessava— não precisariam usar toda sua capacidade para gerar energia, que passaria a ser agora sob demanda.
Das cinco geradoras, apenas o BTG chegou nessa fase já tendo pago a multa de R$ 200 milhões que recebeu da Aneel.
O banco foi representado no TCU por Marcus Vinícius Furtado Coelho, ex-presidente da OAB nacional. O advogado foi um dos maiores doadores da campanha do ministro Alexandre Silveira ao Senado em 2022. Depositou R$ 100 mil.
Nas contas do TCU, o acordo com a BTG reduzirá a tarifa emergencial, podendo significar uma economia estimada em R$ 224 milhões até 2025.
A turca KPS negociou sua dívida de R$ 1,1 bilhão em 12 vezes. O caso da Âmbar ainda está em aberto. Se não chegar a um acordo, terá que pagar a multa de R$ 1,2 bilhão ou discutir o valor na Justiça. A reportagem apurou que a Aneel deu aval para avançar nas negociações.
E o que o leilão emergencial tem a ver com a disputa aberta por Lira?
O centrão não gostou nada de saber que o ministro havia negociado com as geradoras sem o envolvimento dos parlamentares. A reação foi justamente aprovar o projeto que tira o governo dessa interlocução.
Na votação da urgência do projeto de lei, apenas o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) acendeu o sinal vermelho.
“O que vossas excelências estão propondo aqui? (…) Não vamos mentir para as pessoas que estão acompanhando a sessão. Essa tentativa de desqualificar o interlocutor que se posiciona de forma a impedir determinados interesses nesta Casa, no caso da bancada do PSOL, não vai funcionar. Há problemas nesse texto, e não são poucos, não”, disse Glauber em reação a críticas por questionar a medida.
Ao UOL, o deputado foi mais explícito. “Há uma preocupação de que, ao invés de ser utilizado para o bem comum, esse projeto sirva de barganha política para renovação infinita dos contratos de geração de energia”, disse.
O questionamento é que, se estivessem preocupados com o consumidor, governo e Congresso tratariam do tema em conjunto e não disputariam a interlocução com as empresas. Se aprovado na Câmara, o projeto precisaria ainda do aval do Senado.
Procurados, Lira e o ministro Rui Costa não quiseram se manifestar. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que não conhece o teor do projeto da Câmara.
O ministro de Minas e Energia disse que classifica Marcus Vinícius como “seu amigo” e promete “deixar a vida pública caso alguém mostre que indicou o advogado para algum trabalho”. Silveira também afirmou que o governo não cancelou os leilões emergenciais para evitar risco de judicialização dos contratos
O advogado Marcus Vinícius afirmou que trabalha nesse caso para o BTG há três anos, portanto, antes de Silveira assumir o ministério. Sobre sua relação com o ministro, afirmou que “é normal, como com todos os outros”. Lembrando que ele doou R$ 100 mil para campanha, disse que fez o mesmo com outros candidatos que lhe pediram. No total, Marcus Vinícius repassou recursos para cinco candidatos.
Procurada, a Âmbar disse que não vai se manifestar. Já o BTG ainda não retornou.
*Colunista do UOL
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