Frente a Frente com Fidel Castro
Quantos jornalistas brasileiros da minha geração já tiveram uma chance de entrevistar Fidel Castro? Posso estar enganado, mas se contam nos dedos. Eu sou um deles! Com um detalhe: embora não tenha sido exclusiva, com a presença apenas de mais dois jornalistas, se deu no suntuoso Palácio da Revolução, em Havana, capital cubana, em 2002.
Eu nunca imaginei estar frente a frente com o mito, líder autoritário ou um simples tirano? Na verdade, Fidel foi uma lenda revolucionária, algoz do imperialismo americano para a esquerda militante.
Último sobrevivente da Guerra Fria, foi o ator político do século XX que mais manchetes colecionou durante seus 47 anos de poder absoluto em Cuba. Teve incontáveis mortes anunciadas, além de mais de 600 tentativas frustradas de assassiná-lo, incluindo planos da CIA que envolviam milkshakes de chocolate com cianureto e roupas de mergulho infectadas com bactérias mortais.
Eu estava em Brasília quando Eduardo Monteiro, empresário do açúcar e do álcool que se apaixonou pela notícia impressa em papel com cheiro de tinta, ligou me escalando para a missão de acompanhar a delegação de Lula que passaria dez dias em Cuba, com direito a ser recebida por Fidel. Não acreditei. Incorporei-me ao grupo de Lula em São Paulo numa noite que virou a madrugada até o desembarque na ilha cubana.
Peguei a biografia de Fidel para ler no voo. A trajetória de Fidel Alejandro Castro Ruz começa em agosto de 1926 no pequeno vilarejo de Birán. Seu pai, Ángel Castro, era um fazendeiro galego que chegara a Cuba como soldado substituto ao fim da guerra de independência, e sua mãe, Lina Ruz, trabalhava como empregada na fazenda da família.
Fidel foi o terceiro dos sete filhos que Ángel teve fora do casamento, e não recebeu o sobrenome do pai até a adolescência, quando seus pais finalmente se casaram. Estudante de Direito na Universidade de Havana, Fidel se juntou à tentativa de expedição armada para derrubar o ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo, em 1947. Um ano mais tarde, já ocupando uma posição de destaque entre as lideranças estudantis, teve sua primeira experiência de insurreição popular, ao participar de uma revolta em Bogotá, após o assassinato do líder liberal colombiano Jorge Eliécer Gaitán.
O golpe de Estado liderado pelo sargento Fulgencio Batista em 10 de março de 1952 mudou para sempre a História de Cuba e de Fidel, que participou do ataque ao quartel de Moncada, no ano seguinte. Preso, assumiu a própria defesa, afirmando que a História o absolveria, apresentou seu plano político e revolucionário, e foi condenado a 15 anos de prisão.
Anistiado em 1955, partiu para o México, onde conheceu Ernesto “Che” Guevara. Retornou a Cuba no ano seguinte e iniciou a luta guerrilheira que derrubaria Batista na madrugada de 1º de janeiro de 1959.
O encontro com Fidel se deu durante um almoço para Lula e sua comitiva. Entramos no Palácio da Revolução depois de uma revista rigorosa. Nunca vi tamanha segurança. O Palácio é um acinte à pobreza franciscana dos cubanos, em alguns salões vi prata e ouro. O almoço foi outra agressão ao que vi na face de dificuldades do povo cubano nas ruas de Havana e Varadero, por onde começamos o périplo: lagosta, camarão e ostra, só faltou caviar. Um bom vinho de entrada e até morrito, tradicional bebida cubana preparada com rum.
Fidel almoçou ao lado de Lula. Depois de degustarem também um original charuto cubano, o líder revolucionário nos recebeu para a entrevista. Logo na introdução, falou 30 minutos, sem direito a interrupção. Eu, por exemplo, tentei duas vezes fazer uma pergunta sobre o embargo americano, mas ele levantava a mão com o sinal de reprovação, com seus seguranças pedindo para aguardar. Em duas horas e meia, eu e mais dois jornalistas, um do Estadão e outro da Veja, só conseguimos fazer uma ou duas perguntas. Cada resposta era dada como um discurso sem fim.
Só assim compreendi que não estava no mundo do folclore a versão de que os discursos de Fidel duravam uma eternidade. Por meio século, Fidel governou a ilha com longos discursos e utilizou a televisão para manter o apoio popular, um tesouro político que administrou com a mesma habilidade com que se livrou dos inimigos e com a qual usou os aliados para montar seu sistema político, no qual o Exército e o Partido Comunista foram os pilares do poder.
Entre 1989 e 1993, o mundo despencou para o socialismo cubano. A perda repentina de 90% de seu abastecimento e de 35% de seu PIB levou o governo do país a aceitar uma série de reformas. Já em 2003, Fidel não hesitou em enviar à prisão 75 dissidentes, apesar da unânime condenação internacional. Na época, a chegada de Hugo Chávez ao poder na Venezuela revigorou os velhos sonhos de estender a revolução por todo o continente, e a troca de petróleo por serviços de saúde se tornou o pilar da economia cubana.
Uma grave doença intestinal tirou Fidel da Presidência em julho de 2006, dando início a um processo de reformas controlado que manteve o líder da revolução em segundo plano, escrevendo artigos e mantendo suas críticas aos Estados Unidos. Em 2015, em meio à retomada de relações entre os dois países, Fidel se pronunciou numa carta, apoiando as medidas promovidas por seu irmão, mas afirmando não confiar na política americana.
Fidel morreu com 90 anos em 2016. Na noite de 31 de julho de 2006, surpreendeu Cuba e o mundo com o anúncio de que cedia o poder ao irmão Raúl, em caráter provisório, depois de sofrer hemorragias. Foi a primeira vez que saiu do poder. Sem revelar qual doença o afetava, Fidel admitiu que esteve à beira da morte. Perdeu quase 20 quilos nos primeiros 34 dias de crise, passou por várias cirurgias e dependeu por muitos meses de cateteres.